domingo, 30 de maio de 2010

A sonzeira do Funk Como Le Gusta!

Ouvindo o trabalho dos grupos que existem aos montes no Brasil, sinto falta de uma formação instrumental com um som potente, bem tocado e contagiante: uma banda! Não me refiro às bandas de rock, nem exatamente àquelas militares ou as de coreto, muito comuns antigamente e que animavam os passeios pelas praças. Mas, uma mescla (ou modernização) a partir da incorporação do naipe de metais e do set de percussão ao básico quarteto guitarra-piano-bateria-baixo.
Penso nisso ao ouvir um CD do grupo Funk Como Le Gusta chamado Roda de Funk (ST2 Records, 2000). Para quem não conhece, é uma banda desse tipo formada nos anos 1990 pela cozinha rítmica (bateria, baixo e percussão), mais guitarra, teclado, o maravilhoso naipe de sopros (sax, trompete, trombone, flauta etc.) e, dependendo da música, uma ótima voz.
A tradição que o FCLG retoma é das mais importantes. Essa formação existe na música negra norte-americana e na cubana. Aqui no Brasil, tivemos ótimos exemplos, como a banda Black Rio, concebida em 1976 por Oberdan Magalhães e Barrosinho (e retomada em 1999 por William, filho de Oberdan), a Metalurgia, criada em 1982 por Bocato, e a Banda Mantiqueira, fundada por Naylor Proveta no final dos anos 1990. Em todas, a principal característica é a junção criativa e suingada de elementos do funk, da soul music, da salsa e do samba, verdadeiro louvor ao que há de melhor da cultura musical afro-americana, de norte a sul.
Como toda banda, a sessão rítmica do FCLG é sua alma. Tem força, suingue e dinâmica. O baixista Sérgio Bártolo não é do tipo virtuose, mas, ao contrário, sabe dosar a sustentação dos graves, o uso das síncopes e as sutilezas do acompanhamento. Com a bateria de Kuki Stolarski e a percussão de James Müller, formam uma estrutura coesa.
No disco, o conjunto é que se sobressai. O entrosamento, fruto de bom tempo tocando junto em casas noturnas de São Paulo e outras cidades, demonstra a importância do coletivo. Nesse CD, há convidados mais que importantes. Nos vocais, Sandra de Sá (na música Olhos Coloridos) e a rapper chilena Anita Makiza (em Funk Hum) dão toques especiais ao lado da cantora do grupo Paula Lima, hoje em carreira solo. Napoli, Speed, Black Alien e Max trabalham a dicção ritmada do rap sobre a base funk do grupo na canção Fourty Days. Os scratches ficam por conta dos DJs Raff (chileno) e do nosso Nutz. Em Meu Guarda-chuva, clássico de Ben Jor, a presença da Banda Mantiqueira intensifica a sonoridade dos metais.
Vale destacar o resgate do belíssimo tema instrumental Whistle Stop, dos mestres Eumir Deodato e João Donato, do disco Donato Deodato, de 1969, e da bem-humorada 16 Toneladas, sucesso de Travis Merle, cantor country dos anos 1940 e 1950, aqui adaptado para um samba cadenciado na voz gravíssima do trompetista Reginaldo Gomes.

domingo, 16 de maio de 2010

No botequim de Noel

Parece não ser novidade dizer que Noel Rosa era um gênio.
No entanto, pode soar estranho tratá-lo assim tamanha a simplicidade que ele possuía ao construir suas letras e melodias. Se gênio é aquele que cria algo rebuscado, hermético, que necessita de vários conceitos para ser entendido, Noel definitivamente não era isso. Porém, se pensarmos que gênio pode ser aquele que observa e capta o detalhe dentro do turbilhão da vida que se abre na nossa frente, então ele pode ser equiparado aos maiores artistas do mundo.
Isso fica nítido num clássico de nossa música popular. Imaginem alguém que entra num bar, pede um monte de coisas sem perder a pompa e sai com a conta pendurada? Pois é esse personagem que Noel retrata na letra de Conversa de botequim, famosa parceria dele com o músico paulista Vadico (pseudônimo de Oswaldo Gogliano), de 1935.
As frases na letra são absurdamente simples por reproduzirem a performance cotidiana da fala. Cantada numa melodia sem exageros e na cadência brejeira do samba, essa fala revela, em tom coloquial, o personagem que conversa com o garçom que o serve. Os acentos tônicos das palavras estão claramente sincronizados com a distribuição dos tempos fortes e fracos da melodia, o que dá uma excepcional naturalidade ao canto.
A cena descrita é digna dos melhores cronistas da nossa literatura. Revela um personagem malandro e folgado, descreve a cenografia do botequim carioca – o “nosso escritório” – como lugar de encontros e sociabilidades, mostra a presença do futebol e dos mosquitos e, por fim, cita outros personagens, entre a contravenção e a legalidade, comuns ao dia-a-dia da cidade: o garçom que limpa a mesa para que o cliente pague logo a conta, o charuteiro, o bicheiro, o patrão e, inclusive, um inesperado Seu Osório dono do guarda-chuva.
A descrição não deixa de lado certos objetos do ritual simbólico do botequim: cinzeiro, caneta tinteiro, revista, um telefone com um cadenciado número – 34-4333 – para ser discado e a despesa do que foi consumido. Há ainda o típico hábito alimentar matinal do brasileiro urbano indicado pela “boa média que não seja requentada/ Um pão bem quente com manteiga à beça/ Um guardanapo e um copo d’água bem gelado”.
A crônica de um botequim num dia ensolarado do Rio de Janeiro revela a fala e o caminhar do povo por meio do personagem que é símbolo da cultura carioca e que só poderia ser assim representado pelo gênio da canção popular brasileira.
E quem não conhece, “Que pendure essa despesa/ No cabide ali em frente”.

sexta-feira, 30 de abril de 2010

Mistura cubana do rap de X Alfonso e da rumba de Benny Moré

Já sabia que o hip hop ganha o mundo a cada dia que passa e que surgem versões distintas onde aparece. Há rappers no Brasil, Europa, África e em muitas outras terras. Mas, principalmente, há rap em Cuba. Veja bem, se eu disse em Cuba, não me refiro ao famoso grupo Orishas, mais conhecido fora da ilha de Fidel do que dentro!
Pois, Cuba não tem só rumba, salsa e outros ritmos característicos. Para nossa surpresa, há muito rap por lá e de grande qualidade. Parece que o embargo econômico dos EUA, que muitos estragos tem causado aos cubanos, não conseguiu interromper os contatos musicais entre os dois mundos. Claro, pois a cultura (e a música, particularmente) é flexível demais para se deixar prender por limitações políticas ou ideológicas. Ainda mais, se pensarmos em países de ritmos envolventes e históricos hibridismos.
Um bom trabalho de rap cubano é o do jovem músico X Alfonso. Conheço um CD dele, lançado em 2002 - se não me engano, seu terceiro disco - feito em homenagem a Benny Moré, renomado cantor cubano, líder de orquestra com grande sucesso nos anos 1950 em Cuba, México e outros países da América Latina. Por cantar boleros, rumbas e salsas como ninguém e com contagiante performance ao vivo, Benny Moré era conhecido como “El Bárbaro del Ritmo”. Nasceu pobre no interior de Cuba, em 1919, e viveu entre as tradições afro-cubanas, dançando e cantando para os orishas, entidades da santeria, a versão cubana do nosso candomblé. Nos anos 1940, cantou em várias orquestras até ter seu próprio conjunto com o qual encantou muita gente. Morreu em 1963 com problemas de fígado.
X Alfonso é filho de Carlos Alfonso, atual diretor do grupo Síntesis, um dos mais modernos e importantes de Cuba. Cresceu no meio musical, estudou piano e graduou-se no Instituto Superior del Arte. Antenado com as músicas do mundo, foi influenciado por jazz, rock, hip hop e, principalmente, pelos gêneros musicais da ilha.
Conhecedor da importância de Benny, X usou algumas das canções do rumbeiro e juntou com as batidas e scratches do rap. A fusão da rítmica sincopada da rumba aos break beats produziu resultados ótimos. Uma dessas canções é Que bueno baila usted. Nos arranjos, os naipes de metais, o piano e partes do canto de Benny foram juntados com a batida, os scratches e frases faladas. A colagem sonora, possível com o sampler e a criatividade do músico, é excelente. Em De la rumba al cha-cha-cha, destacam-se o canto e a intensa e típica percussão da rumba.
O disco traz também boleros de Benny com letras românticas cantados por X e arranjados com sampler e vários instrumentos eletrônicos. Há ainda canções compostas pelo músico citando a música do rumbeiro.
O mais curioso é que o CD foi masterizado em São Paulo e co-produzido pelo selo brasileiro Velas, do letrista Vitor Martins, grande parceiro de Ivan Lins!

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Duas canções, duas mortes no filme "Baile Perfumado"

Um dos mais belos frutos que o manguebeat – movimentação cultural em Recife nos anos 1990 – gerou está no cinema. Dentre algumas produções de Pernambuco da época, o filme "Baile Perfumado", de Paulo Caldas e Lírio Ferreira, reina absoluto. Não por ser único, ao contrário. Mas pela bela narrativa, pela temática inusitada e, em especial, pela trilha sonora, composta pelos jovens que abalavam a cena musical local e do país na época.
Lançado em 1997, o filme conta a saga do cinegrafista Benjamin Abrahão, de origem libanesa, na tentativa de registrar imagens do bando de cangaceiros de Lampião no sertão nordestino na década de 1930. Imaginem a aventura que seria ir atrás de sanguinários bandidos, perseguidos pela polícia, para filmá-los e, com as imagens, montar um filme sobre eles!
Pois a trilha sonora tenta recuperar esse dinamismo. Para isso, utiliza-se da estética da mistura que o manguebeat inaugurou na música pop pernambucana. As músicas foram compostas por Chico Science, Lucio Maia (guitarrista da Nação Zumbi), Fred 04 (do Mundo Livre S/A) e Siba (então membro do Mestre Ambrósio).
Além das faixas que trabalham mais as sonoridades nordestinas, com rabeca e percussão, e as atmosferas do filme, há duas canções de destaque pelos arranjos, letras e as formas que dão à morte. Uma é "Sangue de Bairro", de Chico Science & Nação Zumbi, gravada no segundo disco da banda – "Afrociberdelia". A música é um xaxado sincopado transformado em hard core pela guitarra distorcida e pela voz gritada, mesclados às percussões e bateria.
A letra começa citando os nomes dos cangaceiros do bando de Lampião: “Bezouro, Moderno, Ezequiel, Candeeiro, Seca Preta, Labareda, Azulão, Arvoredo, Quina-Quina, Bananeira, Sabonete, Catingueira, Limoeiro, Lamparina, Mergulhão, Corisco, Volta Seca, Jararaca, Cajarana, Viriato, Gitirana, Moita-Brava, Meia-Noite, Zambelê”. Depois, desenha em palavras a cena angustiante da cabeça recém degolada rapidamente virada para o próprio corpo para vê-lo estrebuchar: “Quando degolaram minha cabeça/ Passei mais de dois minutos vendo meu corpo tremendo”. Ao final, surge a dúvida existencial de uma cabeça por não saber o que fazer: “E não sabia o que fazer/ Morrer, viver, morrer, viver!”
A segunda canção, "Angicos", em ritmo nordestino agalopado com sons sui generis de cítara indiana, traduz uma possível voz de Lampião quando é assassinado na fazenda de Angicos, em julho de 1938: “Eu tô indo pra Vênus/ Encontrar Maria”. Na letra, o cangaceiro diz que não dá ouvidos ao “seu doutor”, pois “O perfume que eu uso/ Não é como o seu”. Até que seu corpo cai e sua alma sai “... pra soltar raio lazer/ Pra lumiar/ As terras do Cariri”.
Duas canções, violência e salvação, duas maneiras de narrar a morte do herói bandido.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Sting é jazz e é pop!

Dizer que o mundo da música pop é bobagem nada mais é do que proferir outra bobagem. No pop, tudo é possível. Um exemplo de alta qualidade nesse campo é o disco de Sting "Bring on the night", gravado ao vivo e lançado em 1986 (CD em 1996). Compositor, cantor e baixista, Sting surgiu no final dos anos 1970 com o trio The Police, importante na cena pós-punk inglesa por misturar ska e reggae com rock. Mas, o percurso de sucesso não foi longo. Em 1984, a banda se desfez e cada um seguiu seu caminho.
Sting consolidou importante carreira, sobretudo pelo início com o belo disco "The dream of the blue turtles", em 1985. Neste trabalho, o cantor deixou o baixo de lado e chamou quatro destacados músicos de jazz. O baterista era Omar Hakim, do grupo Weather Report e que conhecia o mundo pop por ter gravado o LP "Let’s dance", de David Bowie, de 1983. O baixista era Darryl Jones, que tocara com o grande mestre Miles Davis. No saxofone, nada menos do que Branford Marsalis, que acompanhara Miles, Dizzie Gillespie e Art Blakey. O homem dos teclados era Kenny Kirkland, que também havia tocado com Dizzie. Por fim, as experientes Janice Pendarvis e Dolette M’Donald faziam os vocais.
Nesse primeiro disco solo, além de juntar ótimas figuras do jazz, Sting apurou as composições, em especial as letras. Nelas, questões sociais ("Children’s crusade"), políticas ("We work the black seam") e amorosas ("Consider me gone" e "Moon over Bourbon Street") são muito bem tratadas.
Porém, o mais interessante fica para o trabalho seguinte, o LP duplo "Bring on the night", no qual está registrada a turnê européia desse time de músicos. Aqui, composições novas estão misturadas às antigas da época do The Police, como "Demolition man", "Driven to tears", "Tea in the Sahara", com novos arranjos.
Ao vivo, as canções ganham outro sabor. A base coesa de Hakim e Jones sustenta com suingue os improvisos de Marsalis e Kirkland. Um exemplo é a faixa de abertura, um medley de "Bring on the night" (antiga composição de antes do The Police) e "When the world is running down you made the best of what’s still around" em que o pianista faz um solo veloz, melódico e, ao mesmo tempo, cheio de cromatismos e dissonâncias que alteram a harmonia original. Os solos de Branford Marsalis no sax soprano são um capítulo à parte e aparecem em "Driven to tears" sobre uma base soul muito suingada e, com destaque, em "Children’s crusade". A penúltima faixa, o blues "Down so long", é prato cheio para ambos brincarem à vontade.
No campo vocal, Janice e Dolette dialogam sutilmente nos arranjos com a voz aguda do cantor e com as frases do sax dando colorido especial às melodias.
"Bring on the night" é disco que não se para de ouvir e não é datado. Tem balanço para dançar, letras para reflexão, música bem construída, improvisos delirantes e climas sonoros para devaneios. Imaginem assistir ao DVD do show!

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quarta-feira, 17 de março de 2010

Polêmica, provocação e criatividade em época de ditadura

Corria o mês de setembro de 1972. Havia no país a ditadura militar e passávamos por uma fase especialmente complicada. Apesar do relativo sucesso do milagre econômico, assistíamos a muita propaganda do regime e vários opositores eram perseguidos, torturados e exilados.
A TV Globo organizou o VII Festival Internacional da Canção (FIC) e uma das concorrentes era tão estranha quanto criativa e instigante. Seu autor cantou-a no Maracanãzinho calmamente e sob imensa vaia, já que pouquíssimos teriam a coragem de aplaudir uma peça musical que de música tinha pouca coisa. Quando era possível decifrar algo, devido ao barulho, não havia melodia, acordes ou ritmo. O que era aquilo? Apenas um cantor surdo às vaias e desligado do caos?
A letra, pronunciada em pedaços com entonações de fala e grito junto de sons sintetizados, quase ruídos, dizia: “Que é que tem nessa cabeça irmão/ Que é que tem nessa cabeça ou não/ Que é que tem nessa cabeça saiba que ela pode irmão/ Que é que tem nessa cabeça saiba que ela pode ou não/ Que é que tem nessa cabeça saiba que ela pode explodir irmão/ Que é que tem nessa cabeça saiba que ela pode explodir ou não”.
Um ouvinte lúcido percebeu que a sobreposição de frases poderia ser um recurso caótico que denunciava a estranha situação do país. Outro pensou que as palavras “cabeça”, “pode”, “ou não” e “explodir”, entrelaçadas daquela forma, poderiam gerar outros significados. Se o caos era constante, pois a rigor não havia música, esses flashes de ideias ficavam na audição. Parecia que algo poderia ser feito, ou não, que um perigo poderia explodir a cabeça de alguém, ou não, que algo existia na cabeça de alguém, ou não... Talvez fosse uma forma poética e, ao mesmo tempo, agressiva de mostrar que a situação não estava bem.
Que estranho.
Mas, quem eram esses lúcidos que viram na canção chamada "Cabeça", naquele momento de exceção, uma obra polêmica, criativa e provocadora? Resposta: o júri do festival, formado pela cantora Nara Leão, o maestro Rogério Duprat, o poeta concretista Décio Pignatari, os jornalistas Roberto Freire e Sergio Cabral, o pianista João Carlos Martins, o empresário dos tropicalistas Guilherme Araújo e os radialistas Mario Luís Barbato, Big Boy e Walter Silva.
E, que ousadia, queriam premiá-la!
Pois algum medo a situação deve ter gerado. Por decisão de alguém muito poderoso (talvez, acima da TV Globo), demitiram o júri, desclassificaram "Cabeça" e deram o prêmio a outras duas que acabaram por não passar pela fase internacional do festival.
Para nossa sorte, Walter Franco, o autor que nada tinha de maluco, gravou-a em seu primeiro disco, chamado "Ou não", lançado em 1973, e tornou-se conhecido como um dos artistas mais criativos e ousados da MPB.

segunda-feira, 1 de março de 2010

A maluquice interessante do air guitar

Dentre os elementos que caracterizam o rock, o solo de guitarra é um dos que mais se destaca. Desde Bill Haley até as versões atuais, a performance do guitarrista, o formato do instrumento, os timbres e efeitos usados e as melodias marcam a alma do gênero. O solo de guitarra é um dos pontos altos da música, tanto que os ouvintes esperam ansiosos por sua chegada e aumentam o volume quando o músico executa as primeiras notas. É quase o cartão de visitas, já que a banda pode ser reconhecida pelo timbre ou pelo desenho melódico usados pelo guitarrista.
A empatia do público chega inclusive aos movimentos corporais do músico que empunha essa espécie de cetro mágico para orientar o ritual sonoro e visual do show. Quando reconhecido, a performance vira expressão artística dentro rock e marca de identidade dos músicos.
A prova da força dessa performance está nos campeonatos de air guitar, concursos de pessoas que criam com gestos um suposto guitarrista de rock tocando, porém, sem o instrumento em mãos. Pode parecer absurdo e esquizofrênico, mas há vencedores escolhidos por um júri que avalia a melhor performance instrumental num palco com luzes, play back e sem a guitarra!
Em agosto de 2009, na 14ª edição (acredite, houve 13 anteriores!) do Air Guitar World Championship, na Finlândia, um francês chamado Sylvain Günther Love Quimene foi o grande vencedor. Curioso é que os premiados não precisam, necessariamente, saber tocar. Aliás, os participantes desse festival devem ser exatamente aqueles que não conhecem nada de música. No entanto, numa aparente contradição, têm a rara sensibilidade de traduzir nos trejeitos corporais toda a intensidade e a gama de respostas físicas que o som provoca num músico real. Acabam se igualando aos músicos sem o serem realmente.

Não se trata de mera cópia, como se o “instrumentista” tentasse imitar a apresentação de seu guitarrista preferido. Não temos aqui nenhum tipo de elogio a este ou aquele guitar hero, alvo de real idolatria pela exuberância de sua técnica. O que vale é a atuação desse “músico” como um performático do rock no palco sob o registro de câmeras e olhares do público ávido pelo espetáculo corporal travestido de mentira.
Apesar da aparente falsidade, o que se vê ali não é exatamente mentira ou algum tipo barato de cover. Simplesmente, o fulano está sendo sincero em reproduzir a expressão pura do guitarrista. Ali está uma das essências dessa música: um corpo no ar quase sem limites adaptado virtualmente ao instrumento que melhor caracteriza o gênero e sua cultura. Parece estranho, mas assistir às apresentações postadas no You Tube, de certa forma, chega a empolgar tanto que o tal músico virtual passa a encantar nossos olhos quase da mesma forma que nossos ouvidos são agraciados pelo som.
Sim, claro, é coisa de maluco. Mas, atire a primeira pedra quem for normal ouvindo rock!

Publicado, com adaptações, em setembro de 2009 em www.entermagazine.com.br

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Da América do Sul para a América do Sul

Só estudando história para entender os motivos de sabermos tão pouco sobre nossos vizinhos sul-americanos. Mesmo tendo proximidades culturais, origens afro-ibéricas comuns e processos históricos paralelos, houve elites e imperialismos que distanciaram os países da América do Sul. Hoje, continuamos próximos, porém, estranhos.
Na música, esse desconhecimento é gritante, a ponto de ouvirmos muita música norte-americana e européia e estranharmos os belíssimos gêneros de nossos irmãos de continente. Pois foi contra esse isolamento e a favor da riqueza musical sul-americana que se colocou o pianista Benjamin Taubkin ao criar o coletivo América Contemporânea, em 2005, a partir de um show no festival “Todos os Cantos do Mundo”, em São Paulo.
Taubkin convidou oito músicos com larga experiência de sete países do continente, realizaram apresentações no Brasil, Estados Unidos, América Latina, Canadá e Espanha e gravaram o CD “América Contemporânea – um outro centro” (selo Núcleo Contemporâneo, do próprio pianista). Além de Taubkin, o grupo é formado pelo saxofonista e flautista Alvaro Montenegro (Bolívia), pela cantora Lucia Pulido (Colômbia), pelo violonista Aquiles Báez (Venezuela), pelo percussionista Luis Solar Narciso (Peru), pelo percussionista Ari Colares (Brasil), pelo rabequeiro pernambucano Siba, pelo baixista Christian Galvez (Chile) e pelo multi-instrumentista e cantor Carlos Aguirre (Argentina). No disco, há também a participação especial do pianista e compositor brasileiro José Miguel Wisnik.
Lançado em 2006, o CD traz sotaques musicais distintos que se mesclam em ótimas performances por conta da qualidade dos músicos. Cada uma das 10 faixas mostra uma tradição rítmica de um desses países, seja em composições próprias ou em canções de domínio público. Essas músicas locais são trabalhadas em novos e modernos arranjos que põem em destaque várias possibilidades de criação presentes nas melodias tradicionais, nos timbres instrumentais (os de percussão são muito interessantes!), nos cantos e nos arranjos.
É difícil destacar um ou outro músico, já que todos têm características muito especiais. No entanto, sugiro uma maior atenção para alguns deles, como o exímio violonista Aquiles Báez, o baixista Christian Galvez e sua técnica apurada, o belo timbre de voz de Lucia Pulido e o percussionista Luis Solar, cujo solo de cajon, instrumento afro-peruano, na faixa "Cajoneando" é ótima lição de ritmo. Além, obviamente, do piano do próprio Taubkin, dos tambores de Ari Colares e da voz peculiar e da rabeca de Siba.
Não se trata de disco de músicas tradicionais para ouvidos de turistas ou folcloristas, mas de trabalho moderno e competente que utiliza a tradição para muitas descobertas sonoras.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Os clássicos solos de guitarra

O solo de guitarra é uma das principais partes que se ouve em um rock. O instrumento, sua empunhadura e seus timbres parecem representar todo o conceito que define esse gênero e sua história. Nada contra baixos, teclados, sopros e baterias. Quero dizer que, da mesma forma que violino e piano são a cara da música erudita, violão e pandeiro são a imagem do samba e um bandoneon é a alma do tango, a guitarra simboliza completamente o rock. E, numa música, seu solo é momento sublime e expressivo do guitarrista, quando demonstra técnica e sensibilidade melódica em relação aos outros elementos que compõem a música.
Por isso, penso em quais seriam os solos mais importantes da história do rock, aqueles que identificam uma música mais até que a letra ou a voz do cantor. Por exemplo, nas origens do gênero, imagine ouvir "Roll over Beethoven", de 1956, sem o solo de Chuck Berry e sua performance sobre uma perna dobrada e outra esticada à frente? Sem isso, essa música simplesmente não existiria!
Entre os anos 60 e 70, estão os exemplos clássicos. Não há como não citar os solos de Jimi Hendrix em "Purple Haze", do “deus” Eric Clapton em "Cocaine", de Ritchie Blackmore em "Smoke on the Water", de Brian May, do grupo Queen, em "Bohemian Rhapsody", de Jimmy Page na delicada "Starway to Heaven", imortalizado nas imagens do filme "The Song remains de Same", de 1976 (os shows eram de 1973), ou no dueto das guitarras de Don Felder e Joe Walsh em "Hotel California", do grupo Eagles, também de 1976. Essas músicas devem muito aos seus solos e, se não fossem os guitarristas, talvez nem tivessem a mesma repercussão.
E, como não falar das melodias de David Gilmour, do Pink Floyd, em "Time", do mitológico disco The Dark Side of the Moon, e em "Comfortably Numb", do álbum The Wall? Também não dá pra esquecer os solos de Carlos Santana na suingada "Black Magic Woman" e na melodiosa "Europe".
Nos anos 80, há os “guitar heros”, título que indica técnica, timbre e velocidade de instrumentistas como Ed Van Halen (ouça "Jump", por exemplo) e Steve Vai ("For the Love of God" é representativa). Mas existem os que mantêm a energia do volume e da distorção, como no solo de Angus Young, do australiano AC/DC, em "Back in Black", ou no de Slash, do Guns N’Roses, na música "Sweet Child O’Mine".
Até mesmo no rock brazuca, há solos de fantásticos músicos, como o arranjo melódico das guitarras de Sergio Hinds na progressiva "1974", do grupo O Terço, ou a linguagem musical brasileira de um Pepeu Gomes, em "Malacaxeta". Da mesma forma, é impossível desconectar o sucesso de "Ovelha Negra", cantado por Rita Lee, do solo de Luiz Carlini. E o que dizer de "Bete Balanço" sem o som do jovem Roberto Frejat?
A lista certamente é grande e devo ter cometido algum esquecimento. Alguém sugere outros solos inconfundíveis e clássicos na história do rock?

(Publicado, com pequenas modificações, em outubro de 2009 no site www.entermagazine.com.br)

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Olho de Peixe

A abordagem de temas conceituais na música popular brasileira tem razoável tradição. Obviamente, está longe de aparecer na maioria das letras, mas é possível encontrá-la na obra de alguns compositores atentos a esse diferencial. Um exemplo disso está em "Olho de Peixe", composta por Lenine e gravada no disco homônimo dele e do percussionista Marcos Suzano, de 1992.
A letra trata de dois pólos opostos da razão humana: suas capacidades de encobrimento e de descoberta, ou seja, momentos de fechamento e aqueles em que há uma abertura ao desconhecido. A primeira situação – em que a mente se limita no sentido de repressão – está em dois trechos: “Permanentemente, preso ao presente / O homem na redoma de vidro / São raros instantes de alívio e deleite” e “É como se passasse a vida inteira / Eternizando a miragem / É como o capuz negro / Que cega o falcão selvagem”. A outra situação – quando o instinto da razão caminha para o descobrimento – aparece em: “Ele descobre o véu que esconde o desconhecido / E é como uma tomada à distância / Uma grande angular / É como se nunca tivesse existido dúvida”.
As atitudes de fechamento e descoberta são definidas pela ação da mente humana que, como num baú, decide o que deve ou não ser guardado. É o mesmo mecanismo da memória, em que fatos e ideias são arquivados ou descartados conforme passam pelo filtro da razão. Daí a sentença: “Mas a razão prevalece / Impõe seus limites / E ele se permite esquecer de lembrar”.
Finalmente, para evitar a definição fácil e fechada, Lenine termina a letra com uma pergunta metafórica para levar o ouvinte à reflexão: “Se na cabeça do homem tem um porão / Onde moram o instinto e a repressão / (diz aí) / O que tem no sótão?”. Ou seja, se no porão preso ao subsolo existem esses instrumentos todos de repressão e libertação, o que será que há no sótão, local alto que se abre ao ar? O trecho lança mão ainda de um recurso linguístico típico da conversa informal entre pessoas (“diz aí”) para instigar o ouvinte à solução.
Sendo canção, a letra ganha outros sabores a partir da música. No arranjo, além da voz e do violão de Lenine, há uma curta melodia do sax soprano de Carlos Malta que aparece em vários trechos e funciona como refrão ou, seguindo a dualidade da letra, como condicionamento que nos faz lembrar do presente e do já conhecido. Ao mesmo tempo, o pandeiro de Marcos Suzano sustenta o ritmo da música num compasso de cinco tempos, formato muito estranho aos ouvidos acostumados ao repetitivo padrão de quatro tempos. Esse elemento rítmico inovador equivale, conforme a letra, ao desvelamento do desconhecido, a tomada de uma grande angular que clareia o que antes era dúvida.
Para perceber sutis diferenças, vale a pena ouvir o arranjo dessa pequena-grande canção na gravação feita por Zizi Possi em seu disco "Mais Simples", de 1996.

(Publicado em jan/2010 no site www.entermagazine.com.br)