sábado, 14 de agosto de 2010

Sexo, drogas e Day Tripper!

A carreira dos Beatles tem, grosso modo, duas fases marcantes e opostas: a do início, com canções de amor e juventude, e a do final, com trabalhos mais criativos e críticos. Fico pensando como foi possível uma mudança tão radical e a resposta pode estar no contexto geral da contracultura dos anos 1960, que também atingia as cabeças dos quatro músicos. Mais do que isso, essa transformação pode ser observada com muita clareza em algumas canções representativas.
Um primeiro passo dado da inocência inicial ao experimentalismo está no álbum Rubber Soul, de 1965. Neste disco, apareceram algumas referências às drogas, as primeiras canções que tratam o amor de forma diferenciada e instrumentos nada usuais para o pop da época, como a cítara indiana, por exemplo. Até sua capa foi relevante ao substituir as poses tradicionais por uma foto distorcida de John, Ringo, George e Paul.
Durante as sessões de estúdio, em outubro, gravaram também o sucesso Day Tripper (Lennon e McCartney), lançado em dezembro no lado B do compacto simples com We can work it out. Day Tripper indica parte do que se passava com o grupo. Numa primeira audição, ela é um rock (com os 12 compassos típicos do blues) dançante cuja letra fala de uma mulher que provoca e engana o homem que canta. Nesta “funny song”, segundo McCartney, o riff inicial da guitarra (em E7, abaixo) é sua grande marca de identidade.


No entanto, ao observarmos com atenção, é possível estabelecer uma relação curiosa. O ano de 1965 marca o contato de John Lennon e George Harrison com o LSD. Ambos tomaram a droga pela primeira vez sem saber em Londres quando um amigo dentista colocou as doses nas xícaras de café após um jantar, e uma segunda vez já nos EUA por espontânea vontade. Na letra, essa mulher que dança, provoca e faz viagens sem volta é a metáfora da descoberta de John, autor do riff e de parte da letra.



A tal “viajante diária”, desvendada depois de muito tempo pelo grupo, foi a abertura para novas percepções, sons inimagináveis e temas provocantes que aparecem em Rubber Soul e nos discos seguintes. Mais ainda, vincula fortemente os Beatles às transformações que a juventude colocava em prática ao longo da década.
Day Tripper alcançou o primeiro lugar nas paradas de sucesso na Inglaterra e o quinto nos EUA. Teve versões gravadas por Jimi Hendrix, pelo brasileiro Sergio Mendes, por James Taylor, pelos grupos Whitesnake e Eletric Light Orchestra, entre outros. E mesmo hoje, quase 45 anos depois de lançada, basta ouvir a introdução para que todos se contagiem.

domingo, 1 de agosto de 2010

O Ministério da Economia, segundo o sambista Geraldo Pereira

O período de Getúlio Vargas foi bastante movimentado na área musical. A censura, que existiu na ditadura do Estado Novo, não foi o único combustível dessa produção. Boa parte da criatividade veio de compositores pobres que viam o rádio e o disco como formas de ascensão social.
Claro que alguns eram malandros, gostavam da boemia e o samba sincopado funcionava como sua trilha sonora. Como lembrou meu amigo Bruno Hoffmann, um desses gênios de origem humilde foi Geraldo Pereira. Nascido em Minas Gerais, em 1918, fez carreira no Rio de Janeiro na Era do Rádio. Gostava de passar as noites em bares da Lapa entre bebidas e mulheres. Com fama de valentão, entrou em muitas encrencas até ser socado por Madame Satã, famoso travesti que vivia no Rio. A precária saúde, debilitada pelo álcool e pelas noitadas, não permitiu que suportasse os ferimentos e faleceu com apenas 37 anos.
Geraldo compunha com o material do dia-a-dia. Seus temas principais eram as mulheres e as relações amorosas. Criou clássicos como Falsa baiana, sucesso com a interpretação de Gal Costa, Bolinha de Papel, gravada por João Gilberto, Acertei no milhar, na ginga de Jorge Veiga, e Escurinha que, entre muitas gravações, ganhou delicadeza na voz de Zizi Possi.
No entanto, teve dois sambas de perfil político-social. Um deles, de 1945, falava bem do trabalho e dos benefícios que o bom funcionário tem: “a princípio meu ordenado/ era pouco e muito trabalho/ aguentei o galho e o tempo passou/ agora fui aumentado/ passei a encarregado/ a minha situação melhorou”. Na realidade, Bonde da Piedade, em coautoria com Ary Monteiro, era mais uma pérola da malandragem do sambista, que estava longe de apreciar um emprego comum!
Outro samba assim foi Ministério da Economia, parceria com Arnaldo Passos, gravado pelo sambista em 1951. Neste, o autor dá um recado em apoio à promessa de Getúlio Vargas, que voltava eleito à presidência, de criar o tal ministério e acabar com o alto custo de vida: “seu presidente/ pois era isso que o povo queria/ o ministério da economia/ parece que vai resolver”. Como a vida no morro era difícil, Geraldo diz que agora poderá trazer de volta sua “nega bacana”, que tinha mandado “meter ‘os peito’ na cozinha da madame em Copacabana”.
O mais engraçado, não fosse a trágica questão social, é que, além de trazer “a minha nega pra morar comigo/ porque já vi que não há mais perigo/ ela de fome já não vai morrer (…) porque gosto dela pra cachorro”, a felicidade seria também dos gatos que não vão mais virar churrasco: “os gatos é que vão dar gargalhada de alegria lá no morro”.
Esse samba teve ótimas regravações, entre elas uma feita por Monarco, amigo de Geraldo, em 1982, e outra do inquieto Jards Macalé, de 1987.
A picardia de Geraldo Pereira só não foi maior que a do próprio Getúlio. O ministério não foi criado e a vida no morro só piorou...