domingo, 16 de maio de 2010

No botequim de Noel

Parece não ser novidade dizer que Noel Rosa era um gênio.
No entanto, pode soar estranho tratá-lo assim tamanha a simplicidade que ele possuía ao construir suas letras e melodias. Se gênio é aquele que cria algo rebuscado, hermético, que necessita de vários conceitos para ser entendido, Noel definitivamente não era isso. Porém, se pensarmos que gênio pode ser aquele que observa e capta o detalhe dentro do turbilhão da vida que se abre na nossa frente, então ele pode ser equiparado aos maiores artistas do mundo.
Isso fica nítido num clássico de nossa música popular. Imaginem alguém que entra num bar, pede um monte de coisas sem perder a pompa e sai com a conta pendurada? Pois é esse personagem que Noel retrata na letra de Conversa de botequim, famosa parceria dele com o músico paulista Vadico (pseudônimo de Oswaldo Gogliano), de 1935.
As frases na letra são absurdamente simples por reproduzirem a performance cotidiana da fala. Cantada numa melodia sem exageros e na cadência brejeira do samba, essa fala revela, em tom coloquial, o personagem que conversa com o garçom que o serve. Os acentos tônicos das palavras estão claramente sincronizados com a distribuição dos tempos fortes e fracos da melodia, o que dá uma excepcional naturalidade ao canto.
A cena descrita é digna dos melhores cronistas da nossa literatura. Revela um personagem malandro e folgado, descreve a cenografia do botequim carioca – o “nosso escritório” – como lugar de encontros e sociabilidades, mostra a presença do futebol e dos mosquitos e, por fim, cita outros personagens, entre a contravenção e a legalidade, comuns ao dia-a-dia da cidade: o garçom que limpa a mesa para que o cliente pague logo a conta, o charuteiro, o bicheiro, o patrão e, inclusive, um inesperado Seu Osório dono do guarda-chuva.
A descrição não deixa de lado certos objetos do ritual simbólico do botequim: cinzeiro, caneta tinteiro, revista, um telefone com um cadenciado número – 34-4333 – para ser discado e a despesa do que foi consumido. Há ainda o típico hábito alimentar matinal do brasileiro urbano indicado pela “boa média que não seja requentada/ Um pão bem quente com manteiga à beça/ Um guardanapo e um copo d’água bem gelado”.
A crônica de um botequim num dia ensolarado do Rio de Janeiro revela a fala e o caminhar do povo por meio do personagem que é símbolo da cultura carioca e que só poderia ser assim representado pelo gênio da canção popular brasileira.
E quem não conhece, “Que pendure essa despesa/ No cabide ali em frente”.

3 comentários:

  1. Legal Herom, por que você nao posta também videos com as musicas?

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  2. Não percebo ninguém mais genial que Noel. Ele é diferente de Chico Buarque e Tom Jobim, por exemplo, dupla com total esmero no que faz. A genialidade de Noel é ser o oposto destes. Mesmo com sensibilidade e percepção fora do comum, parece sempre que seus sambas foram feitos "nas coxas", despretensiosamente. De um jeito que ninguém nunca mais conseguiu fazer.

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  3. Ah, mudando rapidamente de assunto, já estas músicas de João Gilberto? http://euqueroumsamba.blogspot.com/2010/01/quase-exclusivo-joao-gilberto-na-casa.html

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