Corria o ano de 1984. Nas praças das grandes capitais, pessoas se manifestavam em favor de eleições diretas para presidente da República em apoio à emenda constitucional feita pelo então deputado Dante de Oliveira. O movimento das Diretas Já mobilizava a sociedade civil, mas instituições duras, como governo militar e a TV Globo, por exemplo, negligenciavam o que já era visível.
Em meio ao fuzuê das ruas, um homem maluco de paixão vê “todo mundo na rua de blusa amarela” e acha “que era ela puxando um cordão”. E o fulano parece não ter a exata noção do que ocorria. Tanto que sente aflição e percebe sua “cabeça já pelas tabelas”. É assim que Chico Buarque descreve as sensações absurdas de um apaixonado em meio aos comícios das Diretas Já no samba Pelas tabelas, lançado em disco naquele ano.
Mesmo sabendo que seu desconforto não abala ninguém, as maluquices do personagem aparecem em situações estranhas: ao ver “um bocado de gente descendo as favelas” e achando que eles iam “pedir a cabeça de um homem que olhava as favelas”; no medo de ter sua “cabeça rolando no Maracanã”; ou quando vê “a galera aplaudindo de pé as tabelas” jurando “que era ela que vinha chegando com minha cabeça já pelas tabelas”.
A confusão do apaixonado está incorporada à canção. O trecho da letra citado no final do parágrafo anterior demonstra a intenção do compositor em traduzir a paranoia numa ambiguidade. Há aqui dois versos: “Eu jurei que era ela que vinha chegando/ Com minha cabeça já pelas tabelas”. Pelas estruturas repetitivas da letra (sem refrão) e da melodia e pelo canto acelerado de Chico, que junta ambas as frases, entende-se duas coisas: que ela chegava com a cabeça do cara nas mãos, ou, como aparece em outros trechos, que ele estava “já pelas tabelas”, ou seja, confuso.
Além desses estranhamentos, o desconforto ocorre ainda dentro da música. Como sua estrutura (harmonia e melodia) é cíclica, tal repetição gera situações incômodas ao ouvinte, apenas quebradas pelo acompanhamento rítmico de um gostoso samba rasgado.
Se as citações às Diretas Já estão nas pessoas com blusa amarela, na turma descendo as favelas, na “cidade de noite batendo as panelas”, o que se destaca na letra não é exatamente a postura política, e sim a perturbação de alguém que procura a amada desesperadamente em pleno caos. Aqui, Chico não é político, como muitas vezes teimam em reduzi-lo. Ele trata criativamente de um amor individual num aflitivo momento histórico. Como ele mesmo comentou: “É essa confusão do individual com o coletivo, e aponta muito para o individual naquele momento coletivo. Mas a leitura predominante é a política, que é uma leitura viciada” (citado por Wagner Homem em seu livro Histórias de canções: Chico Buarque, p. 228).
Já que música e canção são assuntos sérios, este é um espaço para discutir os sons das coisas musicais. Podem ser cantados, tocados, dançados ou ouvidos. Podem também ser altos ou baixos, daqui ou de longe. Não há problema se forem amargos, doces demais ou organizados sob outra lógica. Precisam apenas ser apreciáveis de determinado jeito, entendidos e explicados para que tenham sua beleza revelada. Em suma, é "o som da coisa"!
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sábado, 26 de novembro de 2011
quinta-feira, 2 de dezembro de 2010
Chico Buarque, o construtor de letras-poemas
Letra de música não é, necessariamente, poema. E vice-versa. Em princípio, a letra se cria em rimas sobre uma estrutura melódica em determinado ritmo e arranjo musical. A poesia, mais autônoma, resolve-se no conjunto concreto das palavras.
Há letras que se aproximam de poemas por conta das peculiaridades e do rigor na combinação das palavras na poesia. Um caso desses é Construção, de Chico Buarque, gravada no LP homônimo de 1971. Suas frases refazem o percurso do dia de trabalho de um operário da construção civil. Todos os versos são alexandrinos (ou dodecassílabos, com 12 sílabas) e, em todo final de frase, Chico colocou uma palavra proparoxítona (com acento na antepenúltima sílaba). O objetivo era traduzir a vida arrastada do operário num ritmo poético também repetitivo: único, último, mágico, sólido etc.
Algumas metáforas são interessantes e revelam flashes dessa vida dura. Por exemplo, o peso e a dor do trabalho aparecem na frase “seus olhos embotados de cimento e lágrima”.
Até que, após erguer “quatro paredes sólidas”, comer “feijão com arroz como se fosse um príncipe” e dançar e gargalhar “como se ouvisse música”, o personagem tropeça e cai do alto do edifício em construção onde trabalha. A cena da queda é descrita como o vôo de um pássaro, até chegar ao “chão feito um pacote flácido”. A agonia de sua morte, em plena contramão, acaba por atrapalhar o tráfego na movimentada rua da cidade.
Porém, esse rigor poético não basta para traduzir o tema em questão. A música nos ajuda ao oferecer outros sentidos. A melodia, em sequências de notas repetidas, revela também a mesmice da vida operária. O ritmo de samba meio lento, cadenciado, com o som triste de um agogô, ecoa a repetição da vida do trabalho braçal e tais escolhas musicais mostram a tristeza da vida.
O arranjo é progressivo. Os instrumentos aparecem pouco a pouco no acompanhamento e “constroem” a cena até culminarem na morte do trabalhador. A partir desse ponto, com o corpo atrapalhando o tráfego, entram metais, cordas e coro produzindo melodias em contrapontos que simulam o trânsito aparentemente caótico de carros, buzinas e barulhos.
A intensidade sonora aumenta e dá o fundo para Chico cantar novamente a letra com a inversão das palavras do final de cada verso. Tal alteração, em meio aos ruídos do arranjo, provoca efeitos estranhos, como se a morte do personagem fosse traduzida nos absurdos irracionais das frases: “Beijou sua mulher como se fosse lógico (…) Ergueu no patamar quatro paredes flácidas (…) Sentou pra descansar como se fosse um pássaro”.
Se letra e melodia são obra de Chico, vale lembrar que o arranjo inovador que emoldura a composição tem como criador o maestro tropicalista Rogério Duprat, infelizmente falecido dia 26 de outubro de 2006.
Há letras que se aproximam de poemas por conta das peculiaridades e do rigor na combinação das palavras na poesia. Um caso desses é Construção, de Chico Buarque, gravada no LP homônimo de 1971. Suas frases refazem o percurso do dia de trabalho de um operário da construção civil. Todos os versos são alexandrinos (ou dodecassílabos, com 12 sílabas) e, em todo final de frase, Chico colocou uma palavra proparoxítona (com acento na antepenúltima sílaba). O objetivo era traduzir a vida arrastada do operário num ritmo poético também repetitivo: único, último, mágico, sólido etc.
Algumas metáforas são interessantes e revelam flashes dessa vida dura. Por exemplo, o peso e a dor do trabalho aparecem na frase “seus olhos embotados de cimento e lágrima”.
Até que, após erguer “quatro paredes sólidas”, comer “feijão com arroz como se fosse um príncipe” e dançar e gargalhar “como se ouvisse música”, o personagem tropeça e cai do alto do edifício em construção onde trabalha. A cena da queda é descrita como o vôo de um pássaro, até chegar ao “chão feito um pacote flácido”. A agonia de sua morte, em plena contramão, acaba por atrapalhar o tráfego na movimentada rua da cidade.
Porém, esse rigor poético não basta para traduzir o tema em questão. A música nos ajuda ao oferecer outros sentidos. A melodia, em sequências de notas repetidas, revela também a mesmice da vida operária. O ritmo de samba meio lento, cadenciado, com o som triste de um agogô, ecoa a repetição da vida do trabalho braçal e tais escolhas musicais mostram a tristeza da vida.
O arranjo é progressivo. Os instrumentos aparecem pouco a pouco no acompanhamento e “constroem” a cena até culminarem na morte do trabalhador. A partir desse ponto, com o corpo atrapalhando o tráfego, entram metais, cordas e coro produzindo melodias em contrapontos que simulam o trânsito aparentemente caótico de carros, buzinas e barulhos.
A intensidade sonora aumenta e dá o fundo para Chico cantar novamente a letra com a inversão das palavras do final de cada verso. Tal alteração, em meio aos ruídos do arranjo, provoca efeitos estranhos, como se a morte do personagem fosse traduzida nos absurdos irracionais das frases: “Beijou sua mulher como se fosse lógico (…) Ergueu no patamar quatro paredes flácidas (…) Sentou pra descansar como se fosse um pássaro”.
Se letra e melodia são obra de Chico, vale lembrar que o arranjo inovador que emoldura a composição tem como criador o maestro tropicalista Rogério Duprat, infelizmente falecido dia 26 de outubro de 2006.
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