Há exatos 14 anos e um mês (dia 2 de fevereiro de 1997), um acidente de carro entre Recife e Olinda, tirou a vida de uma importante figura da música brasileira e um dos organizadores do manguebeat, cena musical e cultural que removeu o marasmo da capital pernambucana no início dos anos 1990. Dentro do Fiat Uno arrebentado no poste estava o corpo de Chico Science. Seu destino foi tocar e dançar noutro mundo com os mestres de maracatu e os orixás de xangô.
Na turma de jovens que criou o manguebeat, a regra básica era enfiar a antena parabólica na lama do mangue recifense e deixar-se atingir pelas boas vibrações para envenenar os ritmos locais do maracatu, da embolada e da ciranda com as novidades do rock, da soul music, do rap e da música eletrônica. É certo que tais idéias foram desenvolvidas por djs (DJ Dolores), músicos (Fred Zero Quatro, Jorge Du Peixe, Lúcio Maia, Gilmar Bola Oito etc.) e agitadores culturais (H.D. Mabuse, Renato L. etc.), mas Chico foi o principal norteador da rapaziada. Foi dele a proposta de juntar os tambores do Lamento Negro, bloco afro de Olinda, com as guitarras de Lúcio do grupo Loustal e a cadência do rap da Legião Hip Hop.
Se Recife se assustou com o poder de tal mistura e gostou do caldo, o resto do Brasil e os gringos ficaram alucinados. O primeiro disco da banda Chico Science & Nação Zumbi, Da lama ao caos, foi lançado em 1994. Até então, ninguém tinha visto o contato entre a força dos tambores do maracatu-nação (“o som do trovão”) e os riffs da guitarra distorcida do rock; ninguém imaginara as proximidades entre as cadências rítmicas do canto na embolada e no rap; nenhum outro havia colocado a rítmica ondulante da ciranda na música pop ou o groove da soul music na síncope do maracatu; não houve compositor que tivesse conseguido desenhar a cidade de Recife, seus sotaques, expressões e personagens de forma tão simples, direta e íntegra.
Isso foi Chico Science, ouvinte atento dos sons da rica tradição pernambucana e das novidades da cultura pop. Observador das cenas e personagens recifenses, Chico fazia som com garrafas de cerveja (“cascos caos, cascos caos”), lia Josué de Castro (médico que estudara os pobres catadores de caranguejo de Recife) e histórias em quadrinhos (Jacques de Loustal) e se interessava pela teoria do caos.
Claro que seus amigos da Nação Zumbi e do manguebeat sempre estiveram ao seu lado e boa parte de suas criações tem o crédito deles, pois foi o trabalho coletivo que marcou a cena cultural de Recife nos anos 1990 e nos legou esse belo momento de criatividade. Mas, Chico era o centro de convergência, a pele sensível ao toque da informação, o cérebro criativo das misturas.
Já que música e canção são assuntos sérios, este é um espaço para discutir os sons das coisas musicais. Podem ser cantados, tocados, dançados ou ouvidos. Podem também ser altos ou baixos, daqui ou de longe. Não há problema se forem amargos, doces demais ou organizados sob outra lógica. Precisam apenas ser apreciáveis de determinado jeito, entendidos e explicados para que tenham sua beleza revelada. Em suma, é "o som da coisa"!
Mostrando postagens com marcador Chico Science. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Chico Science. Mostrar todas as postagens
quarta-feira, 2 de março de 2011
sexta-feira, 16 de abril de 2010
Duas canções, duas mortes no filme "Baile Perfumado"
Um dos mais belos frutos que o manguebeat – movimentação cultural em Recife nos anos 1990 – gerou está no cinema. Dentre algumas produções de Pernambuco da época, o filme "Baile Perfumado", de Paulo Caldas e Lírio Ferreira, reina absoluto. Não por ser único, ao contrário. Mas pela bela narrativa, pela temática inusitada e, em especial, pela trilha sonora, composta pelos jovens que abalavam a cena musical local e do país na época.
Lançado em 1997, o filme conta a saga do cinegrafista Benjamin Abrahão, de origem libanesa, na tentativa de registrar imagens do bando de cangaceiros de Lampião no sertão nordestino na década de 1930. Imaginem a aventura que seria ir atrás de sanguinários bandidos, perseguidos pela polícia, para filmá-los e, com as imagens, montar um filme sobre eles!
Pois a trilha sonora tenta recuperar esse dinamismo. Para isso, utiliza-se da estética da mistura que o manguebeat inaugurou na música pop pernambucana. As músicas foram compostas por Chico Science, Lucio Maia (guitarrista da Nação Zumbi), Fred 04 (do Mundo Livre S/A) e Siba (então membro do Mestre Ambrósio).
Além das faixas que trabalham mais as sonoridades nordestinas, com rabeca e percussão, e as atmosferas do filme, há duas canções de destaque pelos arranjos, letras e as formas que dão à morte. Uma é "Sangue de Bairro", de Chico Science & Nação Zumbi, gravada no segundo disco da banda – "Afrociberdelia". A música é um xaxado sincopado transformado em hard core pela guitarra distorcida e pela voz gritada, mesclados às percussões e bateria.
A letra começa citando os nomes dos cangaceiros do bando de Lampião: “Bezouro, Moderno, Ezequiel, Candeeiro, Seca Preta, Labareda, Azulão, Arvoredo, Quina-Quina, Bananeira, Sabonete, Catingueira, Limoeiro, Lamparina, Mergulhão, Corisco, Volta Seca, Jararaca, Cajarana, Viriato, Gitirana, Moita-Brava, Meia-Noite, Zambelê”. Depois, desenha em palavras a cena angustiante da cabeça recém degolada rapidamente virada para o próprio corpo para vê-lo estrebuchar: “Quando degolaram minha cabeça/ Passei mais de dois minutos vendo meu corpo tremendo”. Ao final, surge a dúvida existencial de uma cabeça por não saber o que fazer: “E não sabia o que fazer/ Morrer, viver, morrer, viver!”
A segunda canção, "Angicos", em ritmo nordestino agalopado com sons sui generis de cítara indiana, traduz uma possível voz de Lampião quando é assassinado na fazenda de Angicos, em julho de 1938: “Eu tô indo pra Vênus/ Encontrar Maria”. Na letra, o cangaceiro diz que não dá ouvidos ao “seu doutor”, pois “O perfume que eu uso/ Não é como o seu”. Até que seu corpo cai e sua alma sai “... pra soltar raio lazer/ Pra lumiar/ As terras do Cariri”.
Duas canções, violência e salvação, duas maneiras de narrar a morte do herói bandido.
Lançado em 1997, o filme conta a saga do cinegrafista Benjamin Abrahão, de origem libanesa, na tentativa de registrar imagens do bando de cangaceiros de Lampião no sertão nordestino na década de 1930. Imaginem a aventura que seria ir atrás de sanguinários bandidos, perseguidos pela polícia, para filmá-los e, com as imagens, montar um filme sobre eles!
Pois a trilha sonora tenta recuperar esse dinamismo. Para isso, utiliza-se da estética da mistura que o manguebeat inaugurou na música pop pernambucana. As músicas foram compostas por Chico Science, Lucio Maia (guitarrista da Nação Zumbi), Fred 04 (do Mundo Livre S/A) e Siba (então membro do Mestre Ambrósio).
Além das faixas que trabalham mais as sonoridades nordestinas, com rabeca e percussão, e as atmosferas do filme, há duas canções de destaque pelos arranjos, letras e as formas que dão à morte. Uma é "Sangue de Bairro", de Chico Science & Nação Zumbi, gravada no segundo disco da banda – "Afrociberdelia". A música é um xaxado sincopado transformado em hard core pela guitarra distorcida e pela voz gritada, mesclados às percussões e bateria.
A letra começa citando os nomes dos cangaceiros do bando de Lampião: “Bezouro, Moderno, Ezequiel, Candeeiro, Seca Preta, Labareda, Azulão, Arvoredo, Quina-Quina, Bananeira, Sabonete, Catingueira, Limoeiro, Lamparina, Mergulhão, Corisco, Volta Seca, Jararaca, Cajarana, Viriato, Gitirana, Moita-Brava, Meia-Noite, Zambelê”. Depois, desenha em palavras a cena angustiante da cabeça recém degolada rapidamente virada para o próprio corpo para vê-lo estrebuchar: “Quando degolaram minha cabeça/ Passei mais de dois minutos vendo meu corpo tremendo”. Ao final, surge a dúvida existencial de uma cabeça por não saber o que fazer: “E não sabia o que fazer/ Morrer, viver, morrer, viver!”
A segunda canção, "Angicos", em ritmo nordestino agalopado com sons sui generis de cítara indiana, traduz uma possível voz de Lampião quando é assassinado na fazenda de Angicos, em julho de 1938: “Eu tô indo pra Vênus/ Encontrar Maria”. Na letra, o cangaceiro diz que não dá ouvidos ao “seu doutor”, pois “O perfume que eu uso/ Não é como o seu”. Até que seu corpo cai e sua alma sai “... pra soltar raio lazer/ Pra lumiar/ As terras do Cariri”.
Duas canções, violência e salvação, duas maneiras de narrar a morte do herói bandido.
Marcadores:
Baile Perfumado,
Chico Science,
Lampião,
morte,
Nação Zumbi,
trilha sonora
Assinar:
Postagens (Atom)