Na década de 1980, o grupo paulistano Premeditando o Breque usou e abusou do humor em seus trabalhos. Composto por amigos da faculdade de música, o Premê (como ficou conhecido) esteve em festivais universitários no final dos anos 1970 e chegou, em 1981, ao primeiro disco homônimo produzido por conta própria. Participou com Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção e o grupo Rumo da vanguarda paulista, baseada no teatro/selo Lira Paulistana. Entre suas canções mais conhecidas está São Paulo, São Paulo, uma espécie de anti-hino à cidade.
O humor, sua principal característica, não aparecia apenas nas letras, como é mais comum quando pensamos no lado cômico da canção popular. Ao contrário de muitos compositores que trabalham o riso somente por meio da palavra, boa parte da veia cômica do grupo estava nas formas de arranjar suas composições e as versões que faziam de músicas conhecidas. Além da letra, o texto musical também carregava os sentidos do humor.
Algumas canções exemplificam esse tipo de inteligência musical. No disco Quase lindo, de 1983, na faixa Mascando clichê, os músicos utilizam os elementos musicais característicos da disco music (estilo dançante de sucesso comercial desenvolvido nos anos 1970 a partir da funky music) e os transformam em clichês. Como a peça é instrumental, inevitavelmente a indicação de humor se dá pelo uso exagerado das características musicais reconhecidas pelos ouvintes: o ritmo, as frases dos metais, os riffs rítmicos da guitarra, as vozes femininas em coro, o tipo peculiar do canto masculino, entre outras. Essa voz principal não canta letra alguma. Apenas reproduz a entonação da língua inglesa sem ser inteligível. Não dá para entender o idioma, as frases são pronunciadas erroneamente, ou são proferidas em trechos soltos, destacando apenas as nuances rítmicas típicas do canto no funk. Transformados em clichês, esses elementos são apresentados de forma escancarada para mostrarem com humor esses estereótipos.
Outras peças do Premê brincam com os gêneros musicais invertendo seus sentidos. Na também instrumental Samba absurdo (ver o vídeo abaixo), de Mario Manga, gravada no primeiro disco, o samba é reconhecido pelos instrumentos, pelo ritmo e pelos breques, mas é desestruturado quando rompe com a harmonia tradicional e insere trechos atonais. Por causa do estranhamento, essa inversão pode ser pensada como “piada musical”.
No disco Premê vivo, lançado em 1996, os músicos tocam com cinco cavaquinhos uma versão instrumental do sucesso pop de Roberta Flack de 1973 Killing me softly with his song. Nesse mesmo disco, ainda transformam a inconfundível marcha carnavalesca Coração de jacaré em um reggae perfeitamente reconhecido em sua estrutura rítmica, instrumental e vocal. Nesses casos, o dado cômico se encontra nos choques, aparentemente absurdos, entre as tradições que as músicas e seus inusitados arranjos provocam.
Já que música e canção são assuntos sérios, este é um espaço para discutir os sons das coisas musicais. Podem ser cantados, tocados, dançados ou ouvidos. Podem também ser altos ou baixos, daqui ou de longe. Não há problema se forem amargos, doces demais ou organizados sob outra lógica. Precisam apenas ser apreciáveis de determinado jeito, entendidos e explicados para que tenham sua beleza revelada. Em suma, é "o som da coisa"!
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segunda-feira, 15 de novembro de 2010
segunda-feira, 25 de outubro de 2010
Hitler com graça em meu coração
Para os mais novos, falar da dupla Alvarenga e Ranchinho pode parecer pejorativamente coisa de caipira ou, no máximo, aquela imagem amarelada de antecedentes do pop sertanejo atual. No entanto, esses artistas tiveram uma longa e criativa carreira de sucesso. Começaram em 1933 cantando no Circo Pinheiro, em Santos, e trabalharam até a morte de Alvarenga, em 1978. O primeiro disco foi gravado em 1936, pela Odeon, e se seguiram outros cerca de 600 78 rpm (aqueles bolachões antigos com uma faixa de cada lado) e 30 LPs. Foram cantores de rádio em São Paulo e Rio de Janeiro e tiveram participações em vários filmes nacionais e em programas de TV.
O linguajar interiorano da dupla era sempre carregado, destacando os ‘r’ e palavras como “vancê” e “famía”. Esse aspecto é possível perceber em uma de suas peças de maior sucesso, a valsinha Romance de uma caveira. Gravada em 1957 pela dupla e regravada por vários outros intérpretes, descrevia os sentimentos e o inusitado namoro no cemitério.
Outra peça curiosa é Drama de Angélica, de 1947. Nesta valsa trágica, eles narram em versos terminados com estranhas palavras paroxítonas os problemas de saúde e a morte da amada. Já na moda de viola Tudo tá subindo, de 1953, o modo caipira de falar e ver a vida traduz uma ácida crítica à alta dos preços e do custo de vida.
A principal tônica de seus trabalhos era o humor e Alvarenga e Ranchinho foram muito conhecidos pela sátira. Suas modas zombavam de questões marcantes da época em que eram lançadas. Satirizaram Getúlio Vargas, vários políticos, líderes fascistas, o divórcio, a situação precária dos bondes em São Paulo e a troca de moeda para o cruzeiro em 1943. Até o engajado Geraldo Vandré com sua famosa Disparada (cantada por Jair Rodrigues no festival da TV Record de 1966) foi alvo do humor da dupla.
Um exemplo da verve satírica na política está em 1943, na versão bem humorada de Alvarenga e Ranchinho para o conhecido fox Always in my heart. Com o nome Sempre no meu coração, a letra ironizava os fascistas em plena segunda guerra mundial. Nesta gravação, é importante destacar, no arranjo musical, os sons de batidas em madeira (provavelmente) que simulam tiros de revólver, o acompanhamento de sanfona (estranhíssimo para um fox) e a hilariante interpretação do clarinetista Luiz Americano a imitar com seu instrumento cantos de galo e séries de gargalhadas. Neste caso, a performance do músico redobra a comicidade da letra a zombar de líderes de direita.
Ouça essa gravação no acervo de músicas do Instituto Moreira Salles - http://ims.uol.com.br/
Pela extensa carreira, pelas relações com temas políticos e do cotidiano e pela qualidade de seu humor, a dupla foi um marco na música caipira e na história da cultura do país.
O linguajar interiorano da dupla era sempre carregado, destacando os ‘r’ e palavras como “vancê” e “famía”. Esse aspecto é possível perceber em uma de suas peças de maior sucesso, a valsinha Romance de uma caveira. Gravada em 1957 pela dupla e regravada por vários outros intérpretes, descrevia os sentimentos e o inusitado namoro no cemitério.
Outra peça curiosa é Drama de Angélica, de 1947. Nesta valsa trágica, eles narram em versos terminados com estranhas palavras paroxítonas os problemas de saúde e a morte da amada. Já na moda de viola Tudo tá subindo, de 1953, o modo caipira de falar e ver a vida traduz uma ácida crítica à alta dos preços e do custo de vida.
A principal tônica de seus trabalhos era o humor e Alvarenga e Ranchinho foram muito conhecidos pela sátira. Suas modas zombavam de questões marcantes da época em que eram lançadas. Satirizaram Getúlio Vargas, vários políticos, líderes fascistas, o divórcio, a situação precária dos bondes em São Paulo e a troca de moeda para o cruzeiro em 1943. Até o engajado Geraldo Vandré com sua famosa Disparada (cantada por Jair Rodrigues no festival da TV Record de 1966) foi alvo do humor da dupla.
Um exemplo da verve satírica na política está em 1943, na versão bem humorada de Alvarenga e Ranchinho para o conhecido fox Always in my heart. Com o nome Sempre no meu coração, a letra ironizava os fascistas em plena segunda guerra mundial. Nesta gravação, é importante destacar, no arranjo musical, os sons de batidas em madeira (provavelmente) que simulam tiros de revólver, o acompanhamento de sanfona (estranhíssimo para um fox) e a hilariante interpretação do clarinetista Luiz Americano a imitar com seu instrumento cantos de galo e séries de gargalhadas. Neste caso, a performance do músico redobra a comicidade da letra a zombar de líderes de direita.
Ouça essa gravação no acervo de músicas do Instituto Moreira Salles - http://ims.uol.com.br/
Pela extensa carreira, pelas relações com temas políticos e do cotidiano e pela qualidade de seu humor, a dupla foi um marco na música caipira e na história da cultura do país.
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sexta-feira, 24 de setembro de 2010
Chão de estrelas com uma dose de humor
Os clássicos da música brasileira devem ser respeitados? Sim, mas sempre é bom “homenageá-los” com certa dose de humor! Foi o que fizeram Os Mutantes e o maestro Rogério Duprat em 1970 com a canção Chão de estrelas, de Orestes Barbosa e Silvio Caldas.
A letra de Chão de estrelas tinha sido escrita como um poema, todo em decassílabos, por Orestes, que não queria que fosse musicado. Silvio teve muito trabalho para convencer o escritor a transformá-lo numa canção. Depois de aceita a parceria, a música foi lançada em disco em 1937 e se tornou obra-prima do cancioneiro popular com rasgados elogios dos poetas Guilherme de Almeida e Manuel Bandeira. Por exemplo, Bandeira escreveu em 1956 que, para ele, um dos versos mais bonitos da literatura brasileira era “tu pisavas os astros distraída”, referência, na letra e no título, ao teto furado do barraco que deixava pequenos raios do sol bater no chão.
Deve ter sido exatamente esse destaque que moveu Os Mutantes a uma aventura cômica que também ficou na história. O famoso grupo paulista, formado por Arnaldo Dias Batista, Rita Lee, Sergio Dias Batista e os músicos Dinho Leme e Liminha, gravou o clássico no seu terceiro disco A divina comédia ou ando meio desligado. As ideias malucas do arranjo foram partilhadas com o maestro Rogério Duprat, que conheciam desde o célebre disco-manifesto-coletivo tropicalista Tropicália ou panis et circenses, de 1968.
No arranjo, o maestro e os músicos procuraram traduzir nos sons, de forma paródica e engraçada, as situações de desilusão amorosa descritas na letra. A faixa começa como uma valsa tradicional feita por violão e clarinete, com a voz de Arnaldo Batista carregada na pronúncia dos “erres”, nos vibratos e nos prolongamentos das vogais para caricaturar o canto impostado dos seresteiros da época do rádio.
Na segunda parte, quando a letra descreve as cenas, o acompanhamento se transforma em um alegre e debochado dixieland jazz, com banjo, sopros e washboard (literalmente, uma tábua de esfregar roupas usada nos antigos grupos de jazz). Mesclado ao acompanhamento, aparecem vários outros sons metaforizando as frases cantadas: um motor de avião, roupas se rasgando, galos cantando, ranger de portas, tiros de revólver, apupos de plateia de festival, banda de coreto, relógio-cuco etc.
Com as imitações, a proposição era avacalhar as dores de amor que estavam na letra. Mais que isso, se pensarmos na origem da própria canção, estava em jogo ainda a paródia de um clássico da música brasileira. Para completar essas inversões cômicas, o ritmo escolhido, de origem norte-americana, ganhou um tom provocativo numa época de intensos debates nacionalistas contrários à presença de elementos culturais dos EUA na música brasileira, como o rock e a guitarra elétrica.
Não à toa, o disco fora criticado abertamente pelo polêmico e conservador apresentador Flavio Cavalcanti, e quebrado ao vivo em seu programa de TV.
Não à toa, o disco fora criticado abertamente pelo polêmico e conservador apresentador Flavio Cavalcanti, e quebrado ao vivo em seu programa de TV.
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quinta-feira, 15 de julho de 2010
“Tu-tu tens um co-coração fi-fi fingido”, disse o gago apaixonado...
Os teatros de revista do Rio de Janeiro buscavam sempre os melhores compositores para suas montagens. Entre o final de 1930 e o início de 1931, Noel Rosa fora procurado por um desses “roteiristas” que queria montar a revista Café com música, cujos quadros tratariam, de forma crítica e bem humorada, do preço do cafezinho. Apesar de estar às voltas com o vestibular para medicina, no qual passou com a nota mínima, Noel acabou por aceitar a oportunidade de colocar suas canções nos palcos.
Entre as composições feitas para a peça, que seria lançada em abril de 1931 no Teatro Recreio, estava Gago apaixonado, um dos maiores exemplos da criatividade deste cronista da canção popular.
Diz a lenda (leia-se, segundo o próprio compositor) que ela foi feita numa noite para o amigo Manuel Barreiros, o Barreirinha, cuja gagueira se acentuou por causa de um amor não correspondido. O samba foi cantado pelo ator Mesquitinha no palco do teatro, mas a gravação que o imortalizou e se tornou um marco na história da música popular brasileira foi a do próprio menino de Vila Isabel, feita na então gravadora Columbia.
Um aspecto curioso desse samba é a relação entre letra e música. Em primeiro lugar, traz uma curiosa metalinguagem, ou seja, a gagueira está colocada na própria estrutura da canção: é o próprio gago que reclama da mulher cruel que fez estragos em seu coração. A interpretação de Noel coloca nas notas da melodia várias repetições de sílabas ou fonemas reproduzindo a tartamudez aflita do personagem. Não há como cantar a letra sem ser gago. As repetições da letra no canto, além de traduzirem a inusitada situação de Barreirinha, demonstram a graça da história: “Só só só só por ter so so fri frido”, “Tu tu tu tu tu tu tu tu tens um co coração fi fi fingido”.
O efeito cômico do gago sem amor é aumentado com o arranjo feito pelo compositor e pelos músicos que o acompanharam. Se som do pistão com surdina tocado por Napoleão Tavares já provocava ironia, Luis Barbosa exagerou ao batucar um lápis entre os dentes abrindo e fechando a boca para deixar o som mais agudo ou mais grave. A brincadeira com os timbres mostra uma das primeiras formas de comunicar humor pelo arranjo musical na música popular brasileira.
A engraçada dor do personagem e a forma como ele devolve à mulher seu sofrimento também são dignos de nota. Já que ela aparece sem nome, sem identidade, o gago a define como cruel, má, falsa e a acusa de ter um coração fingido, de torná-lo vagabundo, moribundo. Por fim, lança-lhe a praga: “Tu vais fi fi ficar corcunda!”
Como é possível tratamento tão inteligente, inusitado e bem humorado do amor? Obra de situações curiosas observadas com fina percepção e narradas de maneira criativa. Ou seja, é Noel Rosa!
Entre as composições feitas para a peça, que seria lançada em abril de 1931 no Teatro Recreio, estava Gago apaixonado, um dos maiores exemplos da criatividade deste cronista da canção popular.
Diz a lenda (leia-se, segundo o próprio compositor) que ela foi feita numa noite para o amigo Manuel Barreiros, o Barreirinha, cuja gagueira se acentuou por causa de um amor não correspondido. O samba foi cantado pelo ator Mesquitinha no palco do teatro, mas a gravação que o imortalizou e se tornou um marco na história da música popular brasileira foi a do próprio menino de Vila Isabel, feita na então gravadora Columbia.
Um aspecto curioso desse samba é a relação entre letra e música. Em primeiro lugar, traz uma curiosa metalinguagem, ou seja, a gagueira está colocada na própria estrutura da canção: é o próprio gago que reclama da mulher cruel que fez estragos em seu coração. A interpretação de Noel coloca nas notas da melodia várias repetições de sílabas ou fonemas reproduzindo a tartamudez aflita do personagem. Não há como cantar a letra sem ser gago. As repetições da letra no canto, além de traduzirem a inusitada situação de Barreirinha, demonstram a graça da história: “Só só só só por ter so so fri frido”, “Tu tu tu tu tu tu tu tu tens um co coração fi fi fingido”.
O efeito cômico do gago sem amor é aumentado com o arranjo feito pelo compositor e pelos músicos que o acompanharam. Se som do pistão com surdina tocado por Napoleão Tavares já provocava ironia, Luis Barbosa exagerou ao batucar um lápis entre os dentes abrindo e fechando a boca para deixar o som mais agudo ou mais grave. A brincadeira com os timbres mostra uma das primeiras formas de comunicar humor pelo arranjo musical na música popular brasileira.
A engraçada dor do personagem e a forma como ele devolve à mulher seu sofrimento também são dignos de nota. Já que ela aparece sem nome, sem identidade, o gago a define como cruel, má, falsa e a acusa de ter um coração fingido, de torná-lo vagabundo, moribundo. Por fim, lança-lhe a praga: “Tu vais fi fi ficar corcunda!”
Como é possível tratamento tão inteligente, inusitado e bem humorado do amor? Obra de situações curiosas observadas com fina percepção e narradas de maneira criativa. Ou seja, é Noel Rosa!
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