Os teatros de revista do Rio de Janeiro buscavam sempre os melhores compositores para suas montagens. Entre o final de 1930 e o início de 1931, Noel Rosa fora procurado por um desses “roteiristas” que queria montar a revista Café com música, cujos quadros tratariam, de forma crítica e bem humorada, do preço do cafezinho. Apesar de estar às voltas com o vestibular para medicina, no qual passou com a nota mínima, Noel acabou por aceitar a oportunidade de colocar suas canções nos palcos.
Entre as composições feitas para a peça, que seria lançada em abril de 1931 no Teatro Recreio, estava Gago apaixonado, um dos maiores exemplos da criatividade deste cronista da canção popular.
Diz a lenda (leia-se, segundo o próprio compositor) que ela foi feita numa noite para o amigo Manuel Barreiros, o Barreirinha, cuja gagueira se acentuou por causa de um amor não correspondido. O samba foi cantado pelo ator Mesquitinha no palco do teatro, mas a gravação que o imortalizou e se tornou um marco na história da música popular brasileira foi a do próprio menino de Vila Isabel, feita na então gravadora Columbia.
Um aspecto curioso desse samba é a relação entre letra e música. Em primeiro lugar, traz uma curiosa metalinguagem, ou seja, a gagueira está colocada na própria estrutura da canção: é o próprio gago que reclama da mulher cruel que fez estragos em seu coração. A interpretação de Noel coloca nas notas da melodia várias repetições de sílabas ou fonemas reproduzindo a tartamudez aflita do personagem. Não há como cantar a letra sem ser gago. As repetições da letra no canto, além de traduzirem a inusitada situação de Barreirinha, demonstram a graça da história: “Só só só só por ter so so fri frido”, “Tu tu tu tu tu tu tu tu tens um co coração fi fi fingido”.
O efeito cômico do gago sem amor é aumentado com o arranjo feito pelo compositor e pelos músicos que o acompanharam. Se som do pistão com surdina tocado por Napoleão Tavares já provocava ironia, Luis Barbosa exagerou ao batucar um lápis entre os dentes abrindo e fechando a boca para deixar o som mais agudo ou mais grave. A brincadeira com os timbres mostra uma das primeiras formas de comunicar humor pelo arranjo musical na música popular brasileira.
A engraçada dor do personagem e a forma como ele devolve à mulher seu sofrimento também são dignos de nota. Já que ela aparece sem nome, sem identidade, o gago a define como cruel, má, falsa e a acusa de ter um coração fingido, de torná-lo vagabundo, moribundo. Por fim, lança-lhe a praga: “Tu vais fi fi ficar corcunda!”
Como é possível tratamento tão inteligente, inusitado e bem humorado do amor? Obra de situações curiosas observadas com fina percepção e narradas de maneira criativa. Ou seja, é Noel Rosa!
Já que música e canção são assuntos sérios, este é um espaço para discutir os sons das coisas musicais. Podem ser cantados, tocados, dançados ou ouvidos. Podem também ser altos ou baixos, daqui ou de longe. Não há problema se forem amargos, doces demais ou organizados sob outra lógica. Precisam apenas ser apreciáveis de determinado jeito, entendidos e explicados para que tenham sua beleza revelada. Em suma, é "o som da coisa"!
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quinta-feira, 15 de julho de 2010
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