sexta-feira, 18 de março de 2011

Lenine do Pandeiro

Uma homenagem a determinado músico ou compositor não se faz por mero endeusamento, mas mostrando sua importância. Pensando assim, poucos são os casos de canções que demonstram em si as qualidades do homenageado. Pois este é o caso de Jack soul brasileiro, do pernambucano Lenine, que abre seu disco Na pressão (1999) numa reverência ao paraibano Jackson do Pandeiro (1919-82), chamado nos anos 1950 e 1960 de O Rei do Ritmo.
Em primeiro lugar, Lenine compôs usando o suingue do funk como metáfora atual do sucesso que Jackson fez com baião, samba e forró. Na letra, a charada verbal “Jack soul” do título se transforma em “já que sou”, ressoando ainda o nome do paraibano. Conscientemente, Lenine aproveita a cadência rítmica de determinadas palavras (com aliterações e assonâncias), como no trecho cantado: “Do tempero e do batuque/ Do truque do picadeiro/ Do pandeiro e do repique/ Do pique do funk rock”.

A indicação de Jackson como mestre na música popular brasileira é possível ser percebida quando o pernambucano o contextualiza na tradição rítmica popular da cultura brasileira: “Eu canto pro rei da levada/ Na lei da embolada/ Na língua da percussão/ A dança, a moganga, o dengo/ A ginga do mamulengo/ O charme dessa nação”.
Se na música de Lenine, o funk cadenciado dá o tom da levada, os samples e citações compõem o cenário sonoro da homenagem. Há o sample de Cantiga do sapo (de Buco do Pandeiro e Jackson, lançada pelo segundo em 1959) que diz em forma de diálogo: “E diz aí, Tião! Tião? Oi. Fosse? Fui. Comprasse? Comprei. Pagasse? Paguei. Me diz quanto foi? Foi 500 réis”. Importante frisar que o baião original é encaixado no andamento do funk, mantendo quase a mesma cadência rítmica na música.

Há a citação literal de Chiclete com banana (de Gordurinha e sucesso de Jackson de 1959) cantada por Lenine: “Eu ponho bebop no meu samba/ Quando o Tio Sam pegar no tamborim”. Na época desse samba, o Brasil vivia a ascensão da bossa nova e a polêmica do samba ser misturado com o jazz. Daí a provocação de Gordurinha sobre as misturas entre Miami e Copacabana, chiclete com banana (não é banda de axé!) e bebop com samba. A letra tira ainda um sarro do Tio Sam, como ocorreu na clássica Brasil pandeiro, de Assis Valente.
Uma terceira citação, mais cifrada e menos óbvia, está na frase “A ema gemeu”, do batuque O canto da ema, criada por João do Vale e gravada por Jackson em 1956. Apesar de não estar tão próximo de Jackson do Pandeiro, há ainda um pequeno sample do baque do maracatu nação na introdução que acompanha o violão de Lenine.
Jack soul brasileiro é homenagem feita de colagem de ritmos, citações de canções e inteligente contextualização de um dos mais importantes ritmistas da música popular nordestina, ao lado do mestre Luiz Gonzaga.

quarta-feira, 2 de março de 2011

Chico Science, mestre do mangue

Há exatos 14 anos e um mês (dia 2 de fevereiro de 1997), um acidente de carro entre Recife e Olinda, tirou a vida de uma importante figura da música brasileira e um dos organizadores do manguebeat, cena musical e cultural que removeu o marasmo da capital pernambucana no início dos anos 1990. Dentro do Fiat Uno arrebentado no poste estava o corpo de Chico Science. Seu destino foi tocar e dançar noutro mundo com os mestres de maracatu e os orixás de xangô.
Na turma de jovens que criou o manguebeat, a regra básica era enfiar a antena parabólica na lama do mangue recifense e deixar-se atingir pelas boas vibrações para envenenar os ritmos locais do maracatu, da embolada e da ciranda com as novidades do rock, da soul music, do rap e da música eletrônica. É certo que tais idéias foram desenvolvidas por djs (DJ Dolores), músicos (Fred Zero Quatro, Jorge Du Peixe, Lúcio Maia, Gilmar Bola Oito etc.) e agitadores culturais (H.D. Mabuse, Renato L. etc.), mas Chico foi o principal norteador da rapaziada. Foi dele a proposta de juntar os tambores do Lamento Negro, bloco afro de Olinda, com as guitarras de Lúcio do grupo Loustal e a cadência do rap da Legião Hip Hop.
Se Recife se assustou com o poder de tal mistura e gostou do caldo, o resto do Brasil e os gringos ficaram alucinados. O primeiro disco da banda Chico Science & Nação Zumbi, Da lama ao caos, foi lançado em 1994. Até então, ninguém tinha visto o contato entre a força dos tambores do maracatu-nação (“o som do trovão”) e os riffs da guitarra distorcida do rock; ninguém imaginara as proximidades entre as cadências rítmicas do canto na embolada e no rap; nenhum outro havia colocado a rítmica ondulante da ciranda na música pop ou o groove da soul music na síncope do maracatu; não houve compositor que tivesse conseguido desenhar a cidade de Recife, seus sotaques, expressões e personagens de forma tão simples, direta e íntegra.
Isso foi Chico Science, ouvinte atento dos sons da rica tradição pernambucana e das novidades da cultura pop. Observador das cenas e personagens recifenses, Chico fazia som com garrafas de cerveja (“cascos caos, cascos caos”), lia Josué de Castro (médico que estudara os pobres catadores de caranguejo de Recife) e histórias em quadrinhos (Jacques de Loustal) e se interessava pela teoria do caos.
Claro que seus amigos da Nação Zumbi e do manguebeat sempre estiveram ao seu lado e boa parte de suas criações tem o crédito deles, pois foi o trabalho coletivo que marcou a cena cultural de Recife nos anos 1990 e nos legou esse belo momento de criatividade. Mas, Chico era o centro de convergência, a pele sensível ao toque da informação, o cérebro criativo das misturas.