Nos anos 1970, o policial aposentado José Mendes da Silva morava no morro do Pau da Bandeira, ao lado do Morro dos Macacos, no bairro carioca de Vila Izabel. Conhecido como Zé do Caroço e dedicado às causas de sua comunidade, colocou um alto-falante na laje da sua casinha para transmitir notícias importantes aos moradores da redondeza. Até que a esposa de um militar que morava na rua Petrocochino, próxima do morro, reclamou à polícia que o barulho do serviço de alto-falante a incomodava quando assistia à novela.
A história da ação contra a comunidade na época da ditadura foi contada à compositora Leci Brandão que com o tema compôs, em 1978, o samba Zé do Caroço. De tom engajado, a letra retrata o nascimento de um líder comunitário que batalha e “que malha o preço da feira” para ganhar a vida. Diz que ele defende seu povo e o direito deles à informação alternativa, fora, portanto, da alienante televisão “que distrai toda gente com sua novela”. Por isso é “que o Zé bota a boca no mundo/ Ele faz um discurso profundo/ Ele quer ver o bem da favela”. Noutro trecho, a compositora lamenta não haver uma figura como essa no morro da Mangueira, local que frequentava há anos, para mostrar a todos que “Carnaval não é esse colosso/ Nossa escola é raiz, é madeira”.
A composição tem a cara de Leci Brandão, figura ligada à Mangueira, à cultura popular e às causas sociais. De ritmo acelerado e perfil de samba de raiz, a canção foi proibida pela gravadora Polydor quando a sambista iniciava as gravações de seu sexto disco, que sairia em 1981. Não contente e determinada, rescindiu contrato e só gravou outro LP em 1985, já na gravadora Copacabana, com a polêmica faixa no repertório.
Zé do Caroço não é obra datada. Ao contrário, tem vida longa e se desdobra em beleza quanto mais antiga fica. Suas regravações são prova disso. No seu primeiro disco, em 1993, o grupo paulista Art Popular registrou o samba. Em 2000, o grupo carioca Revelação, também em seu primeiro trabalho, incluiu Zé do Caroço.
Se em ambos a estrutura rítmica foi mantida, Seu Jorge deu-lhe nova roupagem, no DVD de 2005 com Ana Carolina, e mostrou como o tema continuava atual. Com sua voz grave e potente e apenas o violão, o cantor diminuiu o andamento para tornar o samba mais arrastado e escancarar a densidade da letra. No ano seguinte, era a vez de Mariana Aydar, também em seu primeiro disco (Leci é madrinha de muitos!), render homenagem ao clássico regravando-o na cadência lenta e com mais introspecção. Por fim, novamente na voz de sua criadora, a música entrou na trilha sonora do filme Tropa de Elite 2, uma das maiores bilheterias do cinema nacional.
O seu José Mendes da Silva faleceu no início dos anos 2000, sabendo que sua história fora imortalizada cantada em verso e prosa. Só não presenciou a instalação de uma Unidade de Polícia Pacificadora no Morro dos Macacos no final de 2010 para acabar com a influência de traficantes. Mas, a novela da TV continua...
Já que música e canção são assuntos sérios, este é um espaço para discutir os sons das coisas musicais. Podem ser cantados, tocados, dançados ou ouvidos. Podem também ser altos ou baixos, daqui ou de longe. Não há problema se forem amargos, doces demais ou organizados sob outra lógica. Precisam apenas ser apreciáveis de determinado jeito, entendidos e explicados para que tenham sua beleza revelada. Em suma, é "o som da coisa"!
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quinta-feira, 19 de janeiro de 2012
segunda-feira, 11 de julho de 2011
O antropofágico Pepeu Gomes
Um dos aspectos mais marcantes no trabalho dos Novos Baianos a partir da entrada de Pepeu Gomes foi a junção da guitarra e da sonoridade “roqueira” com ritmos brasileiros. Caetano Veloso e os Beat Boys já haviam feito isso em 1967, na música Alegria, alegria, no Festival da Record. Nesse mesmo festival, Gilberto Gil e os Mutantes também marcaram a mesma mistura em Domingo no parque. Mas, foi Pepeu que aprofundou os contatos no campo estritamente musical, mesclando características melódicas do choro, os ritmos do samba e do frevo com a distorção e as escalas do rock.
É por isso que esse músico foi fundamental para a construção da identidade sonora dos Novos Baianos. Sua formação ouvindo os chorões Waldir Azevedo e Jacob do Bandolim, e guitarristas como Jimi Hendrix, somada à intuição e ao instinto experimental, deram a ele rara capacidade de trabalhar distintos idiomas de seus instrumentos básicos: violão, guitarra, cavaquinho e bandolim.
Ainda como convidado no primeiro disco da banda – É ferro na boneca! (1970) – essas mesclas apareceram muito limitadas, ainda presas aos padrões ingênuos do rock da época. No segundo trabalho, o hoje clássico Acabou chorare (1972), as misturas são mais produtivas e consistentes. (Ver post de 24/abril/2011 neste blog). Em Preta pretinha, os solos de craviola usam escalas pentatônicas características do rock com melodias do choro. Algo parecido se ouve no samba Swing em Campo Grande: nos solos de violão e craviola de Pepeu é possível ouvir, como pequenas citações, fraseados “roqueiros” em meio ao arranjo acústico do regional que acompanha a voz.
No terceiro disco – Novos Baianos F.C. (1973) – um exemplo foi o inusitado arranjo para a regravação do clássico de Dorival Caymmi Samba da minha terra (original de 1940). Mantida a cadência rítmica do samba, ganha destaque o som distorcido da guitarra de Pepeu no riff principal da música e no solo construído com a linguagem melódica do rock. É possível observar detalhes do desempenho do guitarrista na versão ao vivo no filme Novos Baianos F.C., feito por Solano Ribeiro, também em 1973, para uma emissora de TV alemã.
Além desses exemplos, a guitarra distorcida apareceu com força no sétimo disco da banda, Praga de baiano (1977), já sem Moraes Moreira e o baixista Dadi. Neste trabalho, Pepeu assumiu de vez os arranjos com grande destaque para seu instrumento e o grupo se engajou no frevo, chegando inclusive a montar um trio elétrico para sair no carnaval baiano. Em várias faixas, o ritmo é tocado no padrão eletrificado e dá condições para o músico demonstrar sua habilidade, como se ouve nas músicas Pegando fogo e Luzes no chão.
É por isso que esse músico foi fundamental para a construção da identidade sonora dos Novos Baianos. Sua formação ouvindo os chorões Waldir Azevedo e Jacob do Bandolim, e guitarristas como Jimi Hendrix, somada à intuição e ao instinto experimental, deram a ele rara capacidade de trabalhar distintos idiomas de seus instrumentos básicos: violão, guitarra, cavaquinho e bandolim.
Ainda como convidado no primeiro disco da banda – É ferro na boneca! (1970) – essas mesclas apareceram muito limitadas, ainda presas aos padrões ingênuos do rock da época. No segundo trabalho, o hoje clássico Acabou chorare (1972), as misturas são mais produtivas e consistentes. (Ver post de 24/abril/2011 neste blog). Em Preta pretinha, os solos de craviola usam escalas pentatônicas características do rock com melodias do choro. Algo parecido se ouve no samba Swing em Campo Grande: nos solos de violão e craviola de Pepeu é possível ouvir, como pequenas citações, fraseados “roqueiros” em meio ao arranjo acústico do regional que acompanha a voz.
No terceiro disco – Novos Baianos F.C. (1973) – um exemplo foi o inusitado arranjo para a regravação do clássico de Dorival Caymmi Samba da minha terra (original de 1940). Mantida a cadência rítmica do samba, ganha destaque o som distorcido da guitarra de Pepeu no riff principal da música e no solo construído com a linguagem melódica do rock. É possível observar detalhes do desempenho do guitarrista na versão ao vivo no filme Novos Baianos F.C., feito por Solano Ribeiro, também em 1973, para uma emissora de TV alemã.
Além desses exemplos, a guitarra distorcida apareceu com força no sétimo disco da banda, Praga de baiano (1977), já sem Moraes Moreira e o baixista Dadi. Neste trabalho, Pepeu assumiu de vez os arranjos com grande destaque para seu instrumento e o grupo se engajou no frevo, chegando inclusive a montar um trio elétrico para sair no carnaval baiano. Em várias faixas, o ritmo é tocado no padrão eletrificado e dá condições para o músico demonstrar sua habilidade, como se ouve nas músicas Pegando fogo e Luzes no chão.
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segunda-feira, 1 de novembro de 2010
Tradição e modernidade com Gil
Se ele já foi ministro, bom ou mau, pouco importa. Mas, que o cara é bom mesmo como compositor, isso é verdade! Muitas das canções de Gilberto Gil são exemplos de construção criativa e informação cultural, sem deixar de tocar em rádios, fazer sucesso na boca do povo, participar de trilhas de novelas e se tornar jingle de comerciais de TV.
Um caso rico nesses quesitos todos é Pela Internet, gravada nos discos Quanta (1997) e Quanta gente veio ver (1998 – ao vivo e ganhador do Grammy de melhor disco de World Music). A letra descreve o desejo de entrar na Internet e se relacionar com o mundo pela rede mundial de informações digitais. Mas a aproximação com a web acontece sem deixar de lado os elementos de sua tradição. Gil retoma uma característica forte em seus trabalhos desde o tropicalismo que é a relação entre tradição e modernidade. Ele não quer simplesmente entrar na rede, mas pensa sua dinâmica a partir da vazante da maré, da jangada que veleja, da vontade de mandar um oriki (poema ou verso de saudação ou homenagem) de seu orixá. Ao mesmo tempo, globaliza a tradição ao propor juntar, pelo “infomar”, Taipé, Calcutá, Helsinque, Connecticut, Milão, Japão e Nepal.
O final da canção é a chave da teia de influências construída por Gil. Nas duas últimas linhas da letra, ele canta: “O chefe da polícia carioca avisa pelo celular / Que lá na praça Onze tem um videopôquer para se jogar”. Os que têm ouvidos mais apurados percebem que, neste trecho, ocorre uma mudança na harmonia e na melodia, como se fosse uma parte diferente do restante. Isso ocorre porque a letra faz uma paráfrase moderna do mítico samba Pelo telefone, de Donga e Mauro de Almeida, gravado por Baiano na Casa Edison, Rio de Janeiro, em 1917.
Em Pelo telefone, a frase é “O chefe da folia, pelo telefone, manda avisar / Que com alegria não se questione pra se brincar”. Porém, sabe-se que a versão gravada foi alterada e que a letra original, composta nas rodas de samba na casa da Tia Ciata, próxima da praça Onze, era “O chefe da polícia, pelo telefone, manda avisar / Que na Carioca tem uma roleta pra se jogar”. Com humor, essa versão criticava o delegado do Rio que fazia vista grossa com o jogo de azar na cidade.
O samba Pelo telefone é, na verdade, um maxixe. Porém, fez grande sucesso na época e transitou como poucos pelos níveis culturais popular (sua origem), erudito-letrado (foi registrado em partitura na Biblioteca Nacional, no Rio) e comercial-massivo (gravado em disco). Até hoje, os “bambas” estudiosos do samba o definem como um dos primeiros a marcar a história do gênero. Daí ter sido homenageado por cantores como Almirante, Martinho da Vila, Joyce, entre outros.
O que Gilberto Gil fez foi aumentar a lista de homenagens com a inteligente paráfrase que vincula a modernidade do mundo digital ao dado mítico de fundação do samba carioca concretizado no maxixe de Donga.
Um caso rico nesses quesitos todos é Pela Internet, gravada nos discos Quanta (1997) e Quanta gente veio ver (1998 – ao vivo e ganhador do Grammy de melhor disco de World Music). A letra descreve o desejo de entrar na Internet e se relacionar com o mundo pela rede mundial de informações digitais. Mas a aproximação com a web acontece sem deixar de lado os elementos de sua tradição. Gil retoma uma característica forte em seus trabalhos desde o tropicalismo que é a relação entre tradição e modernidade. Ele não quer simplesmente entrar na rede, mas pensa sua dinâmica a partir da vazante da maré, da jangada que veleja, da vontade de mandar um oriki (poema ou verso de saudação ou homenagem) de seu orixá. Ao mesmo tempo, globaliza a tradição ao propor juntar, pelo “infomar”, Taipé, Calcutá, Helsinque, Connecticut, Milão, Japão e Nepal.
O final da canção é a chave da teia de influências construída por Gil. Nas duas últimas linhas da letra, ele canta: “O chefe da polícia carioca avisa pelo celular / Que lá na praça Onze tem um videopôquer para se jogar”. Os que têm ouvidos mais apurados percebem que, neste trecho, ocorre uma mudança na harmonia e na melodia, como se fosse uma parte diferente do restante. Isso ocorre porque a letra faz uma paráfrase moderna do mítico samba Pelo telefone, de Donga e Mauro de Almeida, gravado por Baiano na Casa Edison, Rio de Janeiro, em 1917.
Em Pelo telefone, a frase é “O chefe da folia, pelo telefone, manda avisar / Que com alegria não se questione pra se brincar”. Porém, sabe-se que a versão gravada foi alterada e que a letra original, composta nas rodas de samba na casa da Tia Ciata, próxima da praça Onze, era “O chefe da polícia, pelo telefone, manda avisar / Que na Carioca tem uma roleta pra se jogar”. Com humor, essa versão criticava o delegado do Rio que fazia vista grossa com o jogo de azar na cidade.
O samba Pelo telefone é, na verdade, um maxixe. Porém, fez grande sucesso na época e transitou como poucos pelos níveis culturais popular (sua origem), erudito-letrado (foi registrado em partitura na Biblioteca Nacional, no Rio) e comercial-massivo (gravado em disco). Até hoje, os “bambas” estudiosos do samba o definem como um dos primeiros a marcar a história do gênero. Daí ter sido homenageado por cantores como Almirante, Martinho da Vila, Joyce, entre outros.
O que Gilberto Gil fez foi aumentar a lista de homenagens com a inteligente paráfrase que vincula a modernidade do mundo digital ao dado mítico de fundação do samba carioca concretizado no maxixe de Donga.
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domingo, 1 de agosto de 2010
O Ministério da Economia, segundo o sambista Geraldo Pereira
O período de Getúlio Vargas foi bastante movimentado na área musical. A censura, que existiu na ditadura do Estado Novo, não foi o único combustível dessa produção. Boa parte da criatividade veio de compositores pobres que viam o rádio e o disco como formas de ascensão social.
Claro que alguns eram malandros, gostavam da boemia e o samba sincopado funcionava como sua trilha sonora. Como lembrou meu amigo Bruno Hoffmann, um desses gênios de origem humilde foi Geraldo Pereira. Nascido em Minas Gerais, em 1918, fez carreira no Rio de Janeiro na Era do Rádio. Gostava de passar as noites em bares da Lapa entre bebidas e mulheres. Com fama de valentão, entrou em muitas encrencas até ser socado por Madame Satã, famoso travesti que vivia no Rio. A precária saúde, debilitada pelo álcool e pelas noitadas, não permitiu que suportasse os ferimentos e faleceu com apenas 37 anos.
Geraldo compunha com o material do dia-a-dia. Seus temas principais eram as mulheres e as relações amorosas. Criou clássicos como Falsa baiana, sucesso com a interpretação de Gal Costa, Bolinha de Papel, gravada por João Gilberto, Acertei no milhar, na ginga de Jorge Veiga, e Escurinha que, entre muitas gravações, ganhou delicadeza na voz de Zizi Possi.
No entanto, teve dois sambas de perfil político-social. Um deles, de 1945, falava bem do trabalho e dos benefícios que o bom funcionário tem: “a princípio meu ordenado/ era pouco e muito trabalho/ aguentei o galho e o tempo passou/ agora fui aumentado/ passei a encarregado/ a minha situação melhorou”. Na realidade, Bonde da Piedade, em coautoria com Ary Monteiro, era mais uma pérola da malandragem do sambista, que estava longe de apreciar um emprego comum!
Outro samba assim foi Ministério da Economia, parceria com Arnaldo Passos, gravado pelo sambista em 1951. Neste, o autor dá um recado em apoio à promessa de Getúlio Vargas, que voltava eleito à presidência, de criar o tal ministério e acabar com o alto custo de vida: “seu presidente/ pois era isso que o povo queria/ o ministério da economia/ parece que vai resolver”. Como a vida no morro era difícil, Geraldo diz que agora poderá trazer de volta sua “nega bacana”, que tinha mandado “meter ‘os peito’ na cozinha da madame em Copacabana”.
O mais engraçado, não fosse a trágica questão social, é que, além de trazer “a minha nega pra morar comigo/ porque já vi que não há mais perigo/ ela de fome já não vai morrer (…) porque gosto dela pra cachorro”, a felicidade seria também dos gatos que não vão mais virar churrasco: “os gatos é que vão dar gargalhada de alegria lá no morro”.
Esse samba teve ótimas regravações, entre elas uma feita por Monarco, amigo de Geraldo, em 1982, e outra do inquieto Jards Macalé, de 1987.
A picardia de Geraldo Pereira só não foi maior que a do próprio Getúlio. O ministério não foi criado e a vida no morro só piorou...
Claro que alguns eram malandros, gostavam da boemia e o samba sincopado funcionava como sua trilha sonora. Como lembrou meu amigo Bruno Hoffmann, um desses gênios de origem humilde foi Geraldo Pereira. Nascido em Minas Gerais, em 1918, fez carreira no Rio de Janeiro na Era do Rádio. Gostava de passar as noites em bares da Lapa entre bebidas e mulheres. Com fama de valentão, entrou em muitas encrencas até ser socado por Madame Satã, famoso travesti que vivia no Rio. A precária saúde, debilitada pelo álcool e pelas noitadas, não permitiu que suportasse os ferimentos e faleceu com apenas 37 anos.
Geraldo compunha com o material do dia-a-dia. Seus temas principais eram as mulheres e as relações amorosas. Criou clássicos como Falsa baiana, sucesso com a interpretação de Gal Costa, Bolinha de Papel, gravada por João Gilberto, Acertei no milhar, na ginga de Jorge Veiga, e Escurinha que, entre muitas gravações, ganhou delicadeza na voz de Zizi Possi.
No entanto, teve dois sambas de perfil político-social. Um deles, de 1945, falava bem do trabalho e dos benefícios que o bom funcionário tem: “a princípio meu ordenado/ era pouco e muito trabalho/ aguentei o galho e o tempo passou/ agora fui aumentado/ passei a encarregado/ a minha situação melhorou”. Na realidade, Bonde da Piedade, em coautoria com Ary Monteiro, era mais uma pérola da malandragem do sambista, que estava longe de apreciar um emprego comum!
Outro samba assim foi Ministério da Economia, parceria com Arnaldo Passos, gravado pelo sambista em 1951. Neste, o autor dá um recado em apoio à promessa de Getúlio Vargas, que voltava eleito à presidência, de criar o tal ministério e acabar com o alto custo de vida: “seu presidente/ pois era isso que o povo queria/ o ministério da economia/ parece que vai resolver”. Como a vida no morro era difícil, Geraldo diz que agora poderá trazer de volta sua “nega bacana”, que tinha mandado “meter ‘os peito’ na cozinha da madame em Copacabana”.
O mais engraçado, não fosse a trágica questão social, é que, além de trazer “a minha nega pra morar comigo/ porque já vi que não há mais perigo/ ela de fome já não vai morrer (…) porque gosto dela pra cachorro”, a felicidade seria também dos gatos que não vão mais virar churrasco: “os gatos é que vão dar gargalhada de alegria lá no morro”.
Esse samba teve ótimas regravações, entre elas uma feita por Monarco, amigo de Geraldo, em 1982, e outra do inquieto Jards Macalé, de 1987.
A picardia de Geraldo Pereira só não foi maior que a do próprio Getúlio. O ministério não foi criado e a vida no morro só piorou...
quinta-feira, 15 de julho de 2010
“Tu-tu tens um co-coração fi-fi fingido”, disse o gago apaixonado...
Os teatros de revista do Rio de Janeiro buscavam sempre os melhores compositores para suas montagens. Entre o final de 1930 e o início de 1931, Noel Rosa fora procurado por um desses “roteiristas” que queria montar a revista Café com música, cujos quadros tratariam, de forma crítica e bem humorada, do preço do cafezinho. Apesar de estar às voltas com o vestibular para medicina, no qual passou com a nota mínima, Noel acabou por aceitar a oportunidade de colocar suas canções nos palcos.
Entre as composições feitas para a peça, que seria lançada em abril de 1931 no Teatro Recreio, estava Gago apaixonado, um dos maiores exemplos da criatividade deste cronista da canção popular.
Diz a lenda (leia-se, segundo o próprio compositor) que ela foi feita numa noite para o amigo Manuel Barreiros, o Barreirinha, cuja gagueira se acentuou por causa de um amor não correspondido. O samba foi cantado pelo ator Mesquitinha no palco do teatro, mas a gravação que o imortalizou e se tornou um marco na história da música popular brasileira foi a do próprio menino de Vila Isabel, feita na então gravadora Columbia.
Um aspecto curioso desse samba é a relação entre letra e música. Em primeiro lugar, traz uma curiosa metalinguagem, ou seja, a gagueira está colocada na própria estrutura da canção: é o próprio gago que reclama da mulher cruel que fez estragos em seu coração. A interpretação de Noel coloca nas notas da melodia várias repetições de sílabas ou fonemas reproduzindo a tartamudez aflita do personagem. Não há como cantar a letra sem ser gago. As repetições da letra no canto, além de traduzirem a inusitada situação de Barreirinha, demonstram a graça da história: “Só só só só por ter so so fri frido”, “Tu tu tu tu tu tu tu tu tens um co coração fi fi fingido”.
O efeito cômico do gago sem amor é aumentado com o arranjo feito pelo compositor e pelos músicos que o acompanharam. Se som do pistão com surdina tocado por Napoleão Tavares já provocava ironia, Luis Barbosa exagerou ao batucar um lápis entre os dentes abrindo e fechando a boca para deixar o som mais agudo ou mais grave. A brincadeira com os timbres mostra uma das primeiras formas de comunicar humor pelo arranjo musical na música popular brasileira.
A engraçada dor do personagem e a forma como ele devolve à mulher seu sofrimento também são dignos de nota. Já que ela aparece sem nome, sem identidade, o gago a define como cruel, má, falsa e a acusa de ter um coração fingido, de torná-lo vagabundo, moribundo. Por fim, lança-lhe a praga: “Tu vais fi fi ficar corcunda!”
Como é possível tratamento tão inteligente, inusitado e bem humorado do amor? Obra de situações curiosas observadas com fina percepção e narradas de maneira criativa. Ou seja, é Noel Rosa!
Entre as composições feitas para a peça, que seria lançada em abril de 1931 no Teatro Recreio, estava Gago apaixonado, um dos maiores exemplos da criatividade deste cronista da canção popular.
Diz a lenda (leia-se, segundo o próprio compositor) que ela foi feita numa noite para o amigo Manuel Barreiros, o Barreirinha, cuja gagueira se acentuou por causa de um amor não correspondido. O samba foi cantado pelo ator Mesquitinha no palco do teatro, mas a gravação que o imortalizou e se tornou um marco na história da música popular brasileira foi a do próprio menino de Vila Isabel, feita na então gravadora Columbia.
Um aspecto curioso desse samba é a relação entre letra e música. Em primeiro lugar, traz uma curiosa metalinguagem, ou seja, a gagueira está colocada na própria estrutura da canção: é o próprio gago que reclama da mulher cruel que fez estragos em seu coração. A interpretação de Noel coloca nas notas da melodia várias repetições de sílabas ou fonemas reproduzindo a tartamudez aflita do personagem. Não há como cantar a letra sem ser gago. As repetições da letra no canto, além de traduzirem a inusitada situação de Barreirinha, demonstram a graça da história: “Só só só só por ter so so fri frido”, “Tu tu tu tu tu tu tu tu tens um co coração fi fi fingido”.
O efeito cômico do gago sem amor é aumentado com o arranjo feito pelo compositor e pelos músicos que o acompanharam. Se som do pistão com surdina tocado por Napoleão Tavares já provocava ironia, Luis Barbosa exagerou ao batucar um lápis entre os dentes abrindo e fechando a boca para deixar o som mais agudo ou mais grave. A brincadeira com os timbres mostra uma das primeiras formas de comunicar humor pelo arranjo musical na música popular brasileira.
A engraçada dor do personagem e a forma como ele devolve à mulher seu sofrimento também são dignos de nota. Já que ela aparece sem nome, sem identidade, o gago a define como cruel, má, falsa e a acusa de ter um coração fingido, de torná-lo vagabundo, moribundo. Por fim, lança-lhe a praga: “Tu vais fi fi ficar corcunda!”
Como é possível tratamento tão inteligente, inusitado e bem humorado do amor? Obra de situações curiosas observadas com fina percepção e narradas de maneira criativa. Ou seja, é Noel Rosa!
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quarta-feira, 30 de junho de 2010
Izaura e a malandragem no samba
O período da história do Brasil que vai da Revolução de 1930 até 1945 é bastante curioso do ponto de vista da música popular.
A época marcou a ascensão de Getúlio Vargas na política nacional, um golpe de estado em 1937 com a implantação da ditadura do Estado Novo e culminou na sua deposição. É muito conhecida também pela expansão do rádio como veículo de massa e instrumento de controle ideológico da sociedade. Foi o início da chamada Era do Rádio, quando fazer sucesso nas emissoras, em especial na Rádio Nacional do Rio de Janeiro, era a glória para cantores e cantoras.
Deixando o glamour de lado, o rádio foi muito controlado pelo governo. Um dos objetivos era melhorar modos considerados negativos para o país, como o malandro e a ideologia da malandragem, uma das maneiras que negros e mulatos pobres criaram para sobrevivência no novo mundo urbano, preconceituoso e competitivo que se abria.
Muitos sambas compostos entre o final da década de 1930 e início de 1940 foram censurados, sendo liberados apenas aqueles cujas letras enalteciam o trabalho, a família e o Brasil como país promissor. Nessa última categoria, há o clássico exemplo do samba-exaltação de Ari Barroso, Aquarela do Brasil, de 1939.
O dado curioso é que vários compositores eram bem mais malandros que os censores, o que, aqui entre nós, não é novidade alguma. Muitos conseguiam burlar a censura com muita criatividade. Um desses exemplos é o samba Izaura, de Herivelto Martins e Roberto Riberti.
A letra trata de um amor impedido de continuar porque, no dia seguinte, o rapaz precisava ir trabalhar. E ele diz claramente: “o trabalho é um dever / todos devem respeitar / oh, Izaura, me desculpe, no domingo eu vou voltar”. Existe aqui uma incompatibilidade. O homem gosta da mulher e quer ficar com ela. No entanto, pesa sobre ele a responsabilidade do trabalho. Tanto que fala à moça: “seu carinho é muito bom / ninguém pode contestar / se você quiser, eu fico / mas vai me prejudicar / eu vou trabalhar”.
Fica claro que trabalho não combina com prazer. Izaura também não é sua esposa, figura feminina que, pela ótica do Estado Novo, combina com a família e o trabalho. Assim, trabalho é apenas um dever e está longe de agradar a todos. Então, para que trabalhar?
Pode-se imaginar que o samba, sucesso no carnaval de 1945, fora lançado quando o governo Vargas estava no fim, já mais liberal e frouxo com a censura. Mas, não deixa de ser curiosa a forma criativa e inteligente que o compositor encontrou para criticar a ideologia do trabalho, coisa que todo mundo já sabia, exceto os censores.
Para quem quiser ouvir esse samba, conheço duas versões interessantes: uma mais brejeira gravada, em 1965, pelo Demônios da Garoa, e outra cheia de sutilezas feita, em 1977, pelo mestre João Gilberto acompanhado por Miúcha.
A época marcou a ascensão de Getúlio Vargas na política nacional, um golpe de estado em 1937 com a implantação da ditadura do Estado Novo e culminou na sua deposição. É muito conhecida também pela expansão do rádio como veículo de massa e instrumento de controle ideológico da sociedade. Foi o início da chamada Era do Rádio, quando fazer sucesso nas emissoras, em especial na Rádio Nacional do Rio de Janeiro, era a glória para cantores e cantoras.
Deixando o glamour de lado, o rádio foi muito controlado pelo governo. Um dos objetivos era melhorar modos considerados negativos para o país, como o malandro e a ideologia da malandragem, uma das maneiras que negros e mulatos pobres criaram para sobrevivência no novo mundo urbano, preconceituoso e competitivo que se abria.
Muitos sambas compostos entre o final da década de 1930 e início de 1940 foram censurados, sendo liberados apenas aqueles cujas letras enalteciam o trabalho, a família e o Brasil como país promissor. Nessa última categoria, há o clássico exemplo do samba-exaltação de Ari Barroso, Aquarela do Brasil, de 1939.
O dado curioso é que vários compositores eram bem mais malandros que os censores, o que, aqui entre nós, não é novidade alguma. Muitos conseguiam burlar a censura com muita criatividade. Um desses exemplos é o samba Izaura, de Herivelto Martins e Roberto Riberti.
A letra trata de um amor impedido de continuar porque, no dia seguinte, o rapaz precisava ir trabalhar. E ele diz claramente: “o trabalho é um dever / todos devem respeitar / oh, Izaura, me desculpe, no domingo eu vou voltar”. Existe aqui uma incompatibilidade. O homem gosta da mulher e quer ficar com ela. No entanto, pesa sobre ele a responsabilidade do trabalho. Tanto que fala à moça: “seu carinho é muito bom / ninguém pode contestar / se você quiser, eu fico / mas vai me prejudicar / eu vou trabalhar”.
Fica claro que trabalho não combina com prazer. Izaura também não é sua esposa, figura feminina que, pela ótica do Estado Novo, combina com a família e o trabalho. Assim, trabalho é apenas um dever e está longe de agradar a todos. Então, para que trabalhar?
Pode-se imaginar que o samba, sucesso no carnaval de 1945, fora lançado quando o governo Vargas estava no fim, já mais liberal e frouxo com a censura. Mas, não deixa de ser curiosa a forma criativa e inteligente que o compositor encontrou para criticar a ideologia do trabalho, coisa que todo mundo já sabia, exceto os censores.
Para quem quiser ouvir esse samba, conheço duas versões interessantes: uma mais brejeira gravada, em 1965, pelo Demônios da Garoa, e outra cheia de sutilezas feita, em 1977, pelo mestre João Gilberto acompanhado por Miúcha.
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terça-feira, 22 de junho de 2010
Que samba é esse, Fernanda?
Uma interessante experimentação na música popular brasileira tem a ver com o uso de aparelhos eletrônicos (sequenciadores, samplers, bateria eletrônica) e com a figura do DJ. Esses equipamentos criaram possibilidades de realizar colagens antes apenas imaginadas ou feitas com algumas limitações.
Quanto ao DJ, a novidade de uns anos para cá é seu status. Se nas décadas de 1950 e 1960 ele era um importante intermediário entre emissoras de rádio, gravadoras e ouvintes, nos últimos anos ganhou outro caráter ao animar raves, manusear sons em aparelhos eletrônicos e, sem ser tradicionalmente um músico, proporcionar ao público uma música dançante. Nas suas discotecagens, vale a criatividade em mixar trechos de canções, alterar andamentos e timbres, criar efeitos mecânicos (como o scratch – ruídos rítmicos feitos ao movimentar um disco no toca-discos) e eletrônicos (sampling, reverb, pitch etc.).
Mas a tecnologia não faz tudo sozinha. Sempre é necessário alto grau de criatividade e bom repertório. Por isso, cito o trabalho da compositora, musicista e cantora Fernanda Porto, que tem muito a ver com esse cenário. Formada em harmonia, composição e canto lírico e autora de trilhas de filmes, Fernanda pendeu seu trabalho para a música eletrônica, em especial o drum’n’bass, desde o final dos anos 1990. Em 2001, fez uma versão eletrônica do clássico Só tinha de ser com você, de Tom Jobim e Aloysio de Oliveira, e no ano seguinte gravou seu primeiro CD pelo selo Trama, com vários sucessos tocados nas rádios.
Inteligente que é, a divulgação massiva não limitou o trabalho da compositora aos padrões do consumo musical. Uma das faixas mais criativas desse disco é a conhecida Sambassim, de Fernanda e Alba Carvalho. A letra fala da realização de um samba, sem seus instrumentos usuais, por uma pessoa que não sabe nada disso, mas sempre ouviu um batuque. Para realizar a façanha, diz que vai “samplear reco-reco e agogô” e misturar “com guitarra e drum’n’bass / Só pra ver como é que fica / Eletrônico o couro da cuíca”. Se surge a dúvida se esse samba é samba mesmo (“De bit acelerado será que é samba assim?”), ela logo se resolve na afirmativa: “De bit acelerado é samba, sim”.
O legal é que a instrumentação também fala do samba, numa saborosa metalinguagem. Voz e violão somam-se às programações eletrônicas. Não há percussões acústicas, apenas sons sampleados desses instrumentos. O ritmo sincopado do samba, perceptível nos “falsos” pandeiros, apitos e tamborins, se mistura ao drum’n’bass, num paralelo entre a divisão rítmica do agogô, da cuíca e de frases do canto. Por exemplo, quando Fernanda canta o trecho “Vou samplear reco-reco e agogô”, a divisão das notas e das sílabas do canto reproduzem a rítmica desses instrumentos.
Há ainda um dúbio jogo fonético no título da canção: funciona ora como “samba assim”, ou seja, desse novo jeito, ou como “samba sim”, que afirma esse tipo eletrônico de samba. Ao final, fica a sentença positiva na letra: “Sim, ficou um samba, sim / Com pandeiro e tamborim / E já penso que sei tudo de samba / Vou sampleando e sambando, sou bamba”.
Ziriguidum!
Quanto ao DJ, a novidade de uns anos para cá é seu status. Se nas décadas de 1950 e 1960 ele era um importante intermediário entre emissoras de rádio, gravadoras e ouvintes, nos últimos anos ganhou outro caráter ao animar raves, manusear sons em aparelhos eletrônicos e, sem ser tradicionalmente um músico, proporcionar ao público uma música dançante. Nas suas discotecagens, vale a criatividade em mixar trechos de canções, alterar andamentos e timbres, criar efeitos mecânicos (como o scratch – ruídos rítmicos feitos ao movimentar um disco no toca-discos) e eletrônicos (sampling, reverb, pitch etc.).
Mas a tecnologia não faz tudo sozinha. Sempre é necessário alto grau de criatividade e bom repertório. Por isso, cito o trabalho da compositora, musicista e cantora Fernanda Porto, que tem muito a ver com esse cenário. Formada em harmonia, composição e canto lírico e autora de trilhas de filmes, Fernanda pendeu seu trabalho para a música eletrônica, em especial o drum’n’bass, desde o final dos anos 1990. Em 2001, fez uma versão eletrônica do clássico Só tinha de ser com você, de Tom Jobim e Aloysio de Oliveira, e no ano seguinte gravou seu primeiro CD pelo selo Trama, com vários sucessos tocados nas rádios.
Inteligente que é, a divulgação massiva não limitou o trabalho da compositora aos padrões do consumo musical. Uma das faixas mais criativas desse disco é a conhecida Sambassim, de Fernanda e Alba Carvalho. A letra fala da realização de um samba, sem seus instrumentos usuais, por uma pessoa que não sabe nada disso, mas sempre ouviu um batuque. Para realizar a façanha, diz que vai “samplear reco-reco e agogô” e misturar “com guitarra e drum’n’bass / Só pra ver como é que fica / Eletrônico o couro da cuíca”. Se surge a dúvida se esse samba é samba mesmo (“De bit acelerado será que é samba assim?”), ela logo se resolve na afirmativa: “De bit acelerado é samba, sim”.
O legal é que a instrumentação também fala do samba, numa saborosa metalinguagem. Voz e violão somam-se às programações eletrônicas. Não há percussões acústicas, apenas sons sampleados desses instrumentos. O ritmo sincopado do samba, perceptível nos “falsos” pandeiros, apitos e tamborins, se mistura ao drum’n’bass, num paralelo entre a divisão rítmica do agogô, da cuíca e de frases do canto. Por exemplo, quando Fernanda canta o trecho “Vou samplear reco-reco e agogô”, a divisão das notas e das sílabas do canto reproduzem a rítmica desses instrumentos.
Há ainda um dúbio jogo fonético no título da canção: funciona ora como “samba assim”, ou seja, desse novo jeito, ou como “samba sim”, que afirma esse tipo eletrônico de samba. Ao final, fica a sentença positiva na letra: “Sim, ficou um samba, sim / Com pandeiro e tamborim / E já penso que sei tudo de samba / Vou sampleando e sambando, sou bamba”.
Ziriguidum!
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domingo, 16 de maio de 2010
No botequim de Noel
Parece não ser novidade dizer que Noel Rosa era um gênio.
No entanto, pode soar estranho tratá-lo assim tamanha a simplicidade que ele possuía ao construir suas letras e melodias. Se gênio é aquele que cria algo rebuscado, hermético, que necessita de vários conceitos para ser entendido, Noel definitivamente não era isso. Porém, se pensarmos que gênio pode ser aquele que observa e capta o detalhe dentro do turbilhão da vida que se abre na nossa frente, então ele pode ser equiparado aos maiores artistas do mundo.
Isso fica nítido num clássico de nossa música popular. Imaginem alguém que entra num bar, pede um monte de coisas sem perder a pompa e sai com a conta pendurada? Pois é esse personagem que Noel retrata na letra de Conversa de botequim, famosa parceria dele com o músico paulista Vadico (pseudônimo de Oswaldo Gogliano), de 1935.
As frases na letra são absurdamente simples por reproduzirem a performance cotidiana da fala. Cantada numa melodia sem exageros e na cadência brejeira do samba, essa fala revela, em tom coloquial, o personagem que conversa com o garçom que o serve. Os acentos tônicos das palavras estão claramente sincronizados com a distribuição dos tempos fortes e fracos da melodia, o que dá uma excepcional naturalidade ao canto.
A cena descrita é digna dos melhores cronistas da nossa literatura. Revela um personagem malandro e folgado, descreve a cenografia do botequim carioca – o “nosso escritório” – como lugar de encontros e sociabilidades, mostra a presença do futebol e dos mosquitos e, por fim, cita outros personagens, entre a contravenção e a legalidade, comuns ao dia-a-dia da cidade: o garçom que limpa a mesa para que o cliente pague logo a conta, o charuteiro, o bicheiro, o patrão e, inclusive, um inesperado Seu Osório dono do guarda-chuva.
A descrição não deixa de lado certos objetos do ritual simbólico do botequim: cinzeiro, caneta tinteiro, revista, um telefone com um cadenciado número – 34-4333 – para ser discado e a despesa do que foi consumido. Há ainda o típico hábito alimentar matinal do brasileiro urbano indicado pela “boa média que não seja requentada/ Um pão bem quente com manteiga à beça/ Um guardanapo e um copo d’água bem gelado”.
A crônica de um botequim num dia ensolarado do Rio de Janeiro revela a fala e o caminhar do povo por meio do personagem que é símbolo da cultura carioca e que só poderia ser assim representado pelo gênio da canção popular brasileira.
E quem não conhece, “Que pendure essa despesa/ No cabide ali em frente”.
No entanto, pode soar estranho tratá-lo assim tamanha a simplicidade que ele possuía ao construir suas letras e melodias. Se gênio é aquele que cria algo rebuscado, hermético, que necessita de vários conceitos para ser entendido, Noel definitivamente não era isso. Porém, se pensarmos que gênio pode ser aquele que observa e capta o detalhe dentro do turbilhão da vida que se abre na nossa frente, então ele pode ser equiparado aos maiores artistas do mundo.
Isso fica nítido num clássico de nossa música popular. Imaginem alguém que entra num bar, pede um monte de coisas sem perder a pompa e sai com a conta pendurada? Pois é esse personagem que Noel retrata na letra de Conversa de botequim, famosa parceria dele com o músico paulista Vadico (pseudônimo de Oswaldo Gogliano), de 1935.
As frases na letra são absurdamente simples por reproduzirem a performance cotidiana da fala. Cantada numa melodia sem exageros e na cadência brejeira do samba, essa fala revela, em tom coloquial, o personagem que conversa com o garçom que o serve. Os acentos tônicos das palavras estão claramente sincronizados com a distribuição dos tempos fortes e fracos da melodia, o que dá uma excepcional naturalidade ao canto.
A cena descrita é digna dos melhores cronistas da nossa literatura. Revela um personagem malandro e folgado, descreve a cenografia do botequim carioca – o “nosso escritório” – como lugar de encontros e sociabilidades, mostra a presença do futebol e dos mosquitos e, por fim, cita outros personagens, entre a contravenção e a legalidade, comuns ao dia-a-dia da cidade: o garçom que limpa a mesa para que o cliente pague logo a conta, o charuteiro, o bicheiro, o patrão e, inclusive, um inesperado Seu Osório dono do guarda-chuva.
A descrição não deixa de lado certos objetos do ritual simbólico do botequim: cinzeiro, caneta tinteiro, revista, um telefone com um cadenciado número – 34-4333 – para ser discado e a despesa do que foi consumido. Há ainda o típico hábito alimentar matinal do brasileiro urbano indicado pela “boa média que não seja requentada/ Um pão bem quente com manteiga à beça/ Um guardanapo e um copo d’água bem gelado”.
A crônica de um botequim num dia ensolarado do Rio de Janeiro revela a fala e o caminhar do povo por meio do personagem que é símbolo da cultura carioca e que só poderia ser assim representado pelo gênio da canção popular brasileira.
E quem não conhece, “Que pendure essa despesa/ No cabide ali em frente”.
quarta-feira, 6 de janeiro de 2010
O samba e o Tio Sam
De meados dos anos 1930 até 1945, o governo de Getúlio Vargas incentivou compositores a criarem músicas que falassem bem do país, prática propagandística corriqueira em muitas ditaduras, como aquela do Estado Novo getulista. Alguns aproveitaram e produziram verdadeiras peças ufanistas a saudar a terra ou o próprio governo. Majoritariamente sambas, tais canções foram chamadas de sambas-exaltação e um dos exemplos mais famosos é "Aquarela do Brasil", de Ary Barroso, gravada por muitos desde sua aparição há exatos 70 anos.
Porém, houve compositores que souberam trabalhar algumas nuances interessantes. Refiro-me a músicas cujas letras não se fecham na pura divulgação positiva, mas trabalham alguma informação não tão óbvia. É o caso de "Brasil Pandeiro", de Assis Valente. A letra desse samba trata muito bem o Brasil, sua música (“expressões que não têm par”), o valor do povo mestiço (“essa gente bronzeada”), a comida típica (“cuscuz, acarajé e abará”), entre outras pérolas.
Porém, curiosamente, parece zombar dos norte-americanos ao citar a superioridade brasileira no gingado e no paladar: “Eu quero ver o Tio Sam tocar pandeiro para o mundo sambar / O Tio Sam está querendo conhecer a nossa batucada / Anda dizendo que o molho da baiana melhorou seu prato (...) Na Casa Branca já dançou a batucada de Ioiô e Iaiá”. Vale lembrar que, na época, os EUA participavam da segunda grande guerra na Europa.
Ironicamente, a reconhecida falta de bossa dos gringos estaria em oposição à grandeza da potência militar e, nos quesitos suingue e paladar, ambos ligados ao prazer, seria inquestionável a dominância brasileira. Ao final, numa verdadeira apoteose, Assis conclama pandeiros esquentados, terreiros iluminados, pastorinhas e cantores, a elevarem a expressão do Brasil porque “nós queremos sambar”.
Outra relação curiosa é que, no período, Carmen Miranda fazia sucesso nos EUA e, junto de Zé Carioca, personagem da Disney, aproximava os dois países – para o bem ou para o mal. Podemos pensar que o deboche do compositor fora tamanho que corria-se o risco da música não ser bem aceita ou entendida. Talvez tenha sido esse o motivo de Carmen ter-se recusado a cantar o samba, gravado em 1940 pelo grupo vocal Anjos do Inferno.
Rusgas à parte, Assis morreu de desgosto em 1958, três anos depois da Pequena Notável, e a composição foi regravada com grande sucesso em 1972 pelos Novos Baianos, grupo pós-tropicalista que redesenhou a mistura samba-rock. No arranjo para "Brasil Pandeiro", a brejeirice típica do violão de Moraes Moreira, o canto de Baby, Moraes e Paulinho Boca de Cantor e as guitarras em contraponto de Pepeu Gomes demonstram a verdadeira bossa nacional.
Última ironia: esse samba tornou-se jingle de uma campanha publicitária na Copa do Mundo de Futebol de 1994, nos EUA.
(Publicado em nov/2009 em www.entermagazine.com.br)
Porém, houve compositores que souberam trabalhar algumas nuances interessantes. Refiro-me a músicas cujas letras não se fecham na pura divulgação positiva, mas trabalham alguma informação não tão óbvia. É o caso de "Brasil Pandeiro", de Assis Valente. A letra desse samba trata muito bem o Brasil, sua música (“expressões que não têm par”), o valor do povo mestiço (“essa gente bronzeada”), a comida típica (“cuscuz, acarajé e abará”), entre outras pérolas.
Porém, curiosamente, parece zombar dos norte-americanos ao citar a superioridade brasileira no gingado e no paladar: “Eu quero ver o Tio Sam tocar pandeiro para o mundo sambar / O Tio Sam está querendo conhecer a nossa batucada / Anda dizendo que o molho da baiana melhorou seu prato (...) Na Casa Branca já dançou a batucada de Ioiô e Iaiá”. Vale lembrar que, na época, os EUA participavam da segunda grande guerra na Europa.
Ironicamente, a reconhecida falta de bossa dos gringos estaria em oposição à grandeza da potência militar e, nos quesitos suingue e paladar, ambos ligados ao prazer, seria inquestionável a dominância brasileira. Ao final, numa verdadeira apoteose, Assis conclama pandeiros esquentados, terreiros iluminados, pastorinhas e cantores, a elevarem a expressão do Brasil porque “nós queremos sambar”.
Outra relação curiosa é que, no período, Carmen Miranda fazia sucesso nos EUA e, junto de Zé Carioca, personagem da Disney, aproximava os dois países – para o bem ou para o mal. Podemos pensar que o deboche do compositor fora tamanho que corria-se o risco da música não ser bem aceita ou entendida. Talvez tenha sido esse o motivo de Carmen ter-se recusado a cantar o samba, gravado em 1940 pelo grupo vocal Anjos do Inferno.
Rusgas à parte, Assis morreu de desgosto em 1958, três anos depois da Pequena Notável, e a composição foi regravada com grande sucesso em 1972 pelos Novos Baianos, grupo pós-tropicalista que redesenhou a mistura samba-rock. No arranjo para "Brasil Pandeiro", a brejeirice típica do violão de Moraes Moreira, o canto de Baby, Moraes e Paulinho Boca de Cantor e as guitarras em contraponto de Pepeu Gomes demonstram a verdadeira bossa nacional.
Última ironia: esse samba tornou-se jingle de uma campanha publicitária na Copa do Mundo de Futebol de 1994, nos EUA.
(Publicado em nov/2009 em www.entermagazine.com.br)
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