sexta-feira, 30 de abril de 2010

Mistura cubana do rap de X Alfonso e da rumba de Benny Moré

Já sabia que o hip hop ganha o mundo a cada dia que passa e que surgem versões distintas onde aparece. Há rappers no Brasil, Europa, África e em muitas outras terras. Mas, principalmente, há rap em Cuba. Veja bem, se eu disse em Cuba, não me refiro ao famoso grupo Orishas, mais conhecido fora da ilha de Fidel do que dentro!
Pois, Cuba não tem só rumba, salsa e outros ritmos característicos. Para nossa surpresa, há muito rap por lá e de grande qualidade. Parece que o embargo econômico dos EUA, que muitos estragos tem causado aos cubanos, não conseguiu interromper os contatos musicais entre os dois mundos. Claro, pois a cultura (e a música, particularmente) é flexível demais para se deixar prender por limitações políticas ou ideológicas. Ainda mais, se pensarmos em países de ritmos envolventes e históricos hibridismos.
Um bom trabalho de rap cubano é o do jovem músico X Alfonso. Conheço um CD dele, lançado em 2002 - se não me engano, seu terceiro disco - feito em homenagem a Benny Moré, renomado cantor cubano, líder de orquestra com grande sucesso nos anos 1950 em Cuba, México e outros países da América Latina. Por cantar boleros, rumbas e salsas como ninguém e com contagiante performance ao vivo, Benny Moré era conhecido como “El Bárbaro del Ritmo”. Nasceu pobre no interior de Cuba, em 1919, e viveu entre as tradições afro-cubanas, dançando e cantando para os orishas, entidades da santeria, a versão cubana do nosso candomblé. Nos anos 1940, cantou em várias orquestras até ter seu próprio conjunto com o qual encantou muita gente. Morreu em 1963 com problemas de fígado.
X Alfonso é filho de Carlos Alfonso, atual diretor do grupo Síntesis, um dos mais modernos e importantes de Cuba. Cresceu no meio musical, estudou piano e graduou-se no Instituto Superior del Arte. Antenado com as músicas do mundo, foi influenciado por jazz, rock, hip hop e, principalmente, pelos gêneros musicais da ilha.
Conhecedor da importância de Benny, X usou algumas das canções do rumbeiro e juntou com as batidas e scratches do rap. A fusão da rítmica sincopada da rumba aos break beats produziu resultados ótimos. Uma dessas canções é Que bueno baila usted. Nos arranjos, os naipes de metais, o piano e partes do canto de Benny foram juntados com a batida, os scratches e frases faladas. A colagem sonora, possível com o sampler e a criatividade do músico, é excelente. Em De la rumba al cha-cha-cha, destacam-se o canto e a intensa e típica percussão da rumba.
O disco traz também boleros de Benny com letras românticas cantados por X e arranjados com sampler e vários instrumentos eletrônicos. Há ainda canções compostas pelo músico citando a música do rumbeiro.
O mais curioso é que o CD foi masterizado em São Paulo e co-produzido pelo selo brasileiro Velas, do letrista Vitor Martins, grande parceiro de Ivan Lins!

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Duas canções, duas mortes no filme "Baile Perfumado"

Um dos mais belos frutos que o manguebeat – movimentação cultural em Recife nos anos 1990 – gerou está no cinema. Dentre algumas produções de Pernambuco da época, o filme "Baile Perfumado", de Paulo Caldas e Lírio Ferreira, reina absoluto. Não por ser único, ao contrário. Mas pela bela narrativa, pela temática inusitada e, em especial, pela trilha sonora, composta pelos jovens que abalavam a cena musical local e do país na época.
Lançado em 1997, o filme conta a saga do cinegrafista Benjamin Abrahão, de origem libanesa, na tentativa de registrar imagens do bando de cangaceiros de Lampião no sertão nordestino na década de 1930. Imaginem a aventura que seria ir atrás de sanguinários bandidos, perseguidos pela polícia, para filmá-los e, com as imagens, montar um filme sobre eles!
Pois a trilha sonora tenta recuperar esse dinamismo. Para isso, utiliza-se da estética da mistura que o manguebeat inaugurou na música pop pernambucana. As músicas foram compostas por Chico Science, Lucio Maia (guitarrista da Nação Zumbi), Fred 04 (do Mundo Livre S/A) e Siba (então membro do Mestre Ambrósio).
Além das faixas que trabalham mais as sonoridades nordestinas, com rabeca e percussão, e as atmosferas do filme, há duas canções de destaque pelos arranjos, letras e as formas que dão à morte. Uma é "Sangue de Bairro", de Chico Science & Nação Zumbi, gravada no segundo disco da banda – "Afrociberdelia". A música é um xaxado sincopado transformado em hard core pela guitarra distorcida e pela voz gritada, mesclados às percussões e bateria.
A letra começa citando os nomes dos cangaceiros do bando de Lampião: “Bezouro, Moderno, Ezequiel, Candeeiro, Seca Preta, Labareda, Azulão, Arvoredo, Quina-Quina, Bananeira, Sabonete, Catingueira, Limoeiro, Lamparina, Mergulhão, Corisco, Volta Seca, Jararaca, Cajarana, Viriato, Gitirana, Moita-Brava, Meia-Noite, Zambelê”. Depois, desenha em palavras a cena angustiante da cabeça recém degolada rapidamente virada para o próprio corpo para vê-lo estrebuchar: “Quando degolaram minha cabeça/ Passei mais de dois minutos vendo meu corpo tremendo”. Ao final, surge a dúvida existencial de uma cabeça por não saber o que fazer: “E não sabia o que fazer/ Morrer, viver, morrer, viver!”
A segunda canção, "Angicos", em ritmo nordestino agalopado com sons sui generis de cítara indiana, traduz uma possível voz de Lampião quando é assassinado na fazenda de Angicos, em julho de 1938: “Eu tô indo pra Vênus/ Encontrar Maria”. Na letra, o cangaceiro diz que não dá ouvidos ao “seu doutor”, pois “O perfume que eu uso/ Não é como o seu”. Até que seu corpo cai e sua alma sai “... pra soltar raio lazer/ Pra lumiar/ As terras do Cariri”.
Duas canções, violência e salvação, duas maneiras de narrar a morte do herói bandido.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Sting é jazz e é pop!

Dizer que o mundo da música pop é bobagem nada mais é do que proferir outra bobagem. No pop, tudo é possível. Um exemplo de alta qualidade nesse campo é o disco de Sting "Bring on the night", gravado ao vivo e lançado em 1986 (CD em 1996). Compositor, cantor e baixista, Sting surgiu no final dos anos 1970 com o trio The Police, importante na cena pós-punk inglesa por misturar ska e reggae com rock. Mas, o percurso de sucesso não foi longo. Em 1984, a banda se desfez e cada um seguiu seu caminho.
Sting consolidou importante carreira, sobretudo pelo início com o belo disco "The dream of the blue turtles", em 1985. Neste trabalho, o cantor deixou o baixo de lado e chamou quatro destacados músicos de jazz. O baterista era Omar Hakim, do grupo Weather Report e que conhecia o mundo pop por ter gravado o LP "Let’s dance", de David Bowie, de 1983. O baixista era Darryl Jones, que tocara com o grande mestre Miles Davis. No saxofone, nada menos do que Branford Marsalis, que acompanhara Miles, Dizzie Gillespie e Art Blakey. O homem dos teclados era Kenny Kirkland, que também havia tocado com Dizzie. Por fim, as experientes Janice Pendarvis e Dolette M’Donald faziam os vocais.
Nesse primeiro disco solo, além de juntar ótimas figuras do jazz, Sting apurou as composições, em especial as letras. Nelas, questões sociais ("Children’s crusade"), políticas ("We work the black seam") e amorosas ("Consider me gone" e "Moon over Bourbon Street") são muito bem tratadas.
Porém, o mais interessante fica para o trabalho seguinte, o LP duplo "Bring on the night", no qual está registrada a turnê européia desse time de músicos. Aqui, composições novas estão misturadas às antigas da época do The Police, como "Demolition man", "Driven to tears", "Tea in the Sahara", com novos arranjos.
Ao vivo, as canções ganham outro sabor. A base coesa de Hakim e Jones sustenta com suingue os improvisos de Marsalis e Kirkland. Um exemplo é a faixa de abertura, um medley de "Bring on the night" (antiga composição de antes do The Police) e "When the world is running down you made the best of what’s still around" em que o pianista faz um solo veloz, melódico e, ao mesmo tempo, cheio de cromatismos e dissonâncias que alteram a harmonia original. Os solos de Branford Marsalis no sax soprano são um capítulo à parte e aparecem em "Driven to tears" sobre uma base soul muito suingada e, com destaque, em "Children’s crusade". A penúltima faixa, o blues "Down so long", é prato cheio para ambos brincarem à vontade.
No campo vocal, Janice e Dolette dialogam sutilmente nos arranjos com a voz aguda do cantor e com as frases do sax dando colorido especial às melodias.
"Bring on the night" é disco que não se para de ouvir e não é datado. Tem balanço para dançar, letras para reflexão, música bem construída, improvisos delirantes e climas sonoros para devaneios. Imaginem assistir ao DVD do show!

Publicado também em www.entermagazine.com.br