Em 1973, um compositor baiano lançou o polêmico disco Todos os olhos. Ele já havia ganhado o 4º Festival de MPB da TV Record, em dezembro de 1968, com a canção São, São Paulo; já tinha participado do álbum Tropicália ou panis et circencis, com o grupo tropicalista liderado por Caetano Veloso e Gilberto Gil nesse mesmo ano; e, entre 1968 e 1972, havia lançado três discos. Seu nome é Tom Zé, artista experimental por natureza.
No álbum Todos os olhos, temos vários exemplos de sua inventividade, a começar pela letra da faixa que abre o trabalho, Complexo de Édipo, uma doce ironia com os compositores nacionais: “Todo compositor brasileiro é um complexado/ Porque então essa mania danada/ Essa preocupação de falar tão sério/ De ser tão sério/ De sorrir tão sério/ (…) De amar tão sério?”. Além dessa, o LP traz uma heterodoxa interpretação de A noite do meu bem, clássico samba-canção de Dolores Duran gravado por ela em 1959, e a composição Augusta, Angélica e Consolação, que cria uma espécie de conversa entre as ruas paulistanas (uma consolação entre duas ruas femininas!) e retrata ironicamente a geografia da cidade e o perfil social e de consumo dessas ruas.
Mas, a música que dá nome ao disco é o ponto alto do trabalho ao metaforizar, num samba cadenciado, a repressão da ditadura da época. A letra fala de “olhos da escuridão” que sempre o observam na expectativa de que ele saiba de algo, que faça algo, mas o compositor de nada sabe e nada pode fazer: “De vez em quando/ Todos os olhos se voltam pra mim/ De lá do fundo da escuridão/ Esperando e querendo/ Que eu seja um herói, que eu seja um herói/ Mas eu sou inocente, eu sou inocente, eu sou inocente”. O canto é áspero e ocorre sobre o clima de mistério do arranjo, figurando algo soturno que sorrateiramente observa. Em meio aos instrumentos, vozes que murmuram, falam sem sentido, gritam, grunhem denunciam a atmosfera de tensão. Ao final, soa a frase gritada por Tom Zé: “Eu sou inocente!”.
Essa música também inspirou a arte da capa do LP, criada pelo poeta Décio Pignatari: em primeiríssimo plano, a foto de uma singela bolinha de gude suavemente pousada no orifício de algo que parece um cu. Pelo formato, sugere uma segunda leitura, mais óbvia, que é a relação da imagem com o desenho do olho. Na verdade, esse tal “olho do cu” nada mais era do que uma boca cujos lábios sustentavam a bolinha para disfarçar o dito cujo, ou o dito olho, como bem explicou o autor da foto e hoje escritor Reinaldo Moraes.
Alguns dizem que era plágio da capa do disco Die Grüne Reise, de 1971, do grupo alemão A.R. & Machines, liderado pelo guitarrista Achim Reichel. Bobagem. Nessa, há três bocas justapostas parecendo uma rosa e com a bolinha na boca do meio. A do disco do Tom tem desenho diferente e sentido mais denso relacionado à época de censura em que foi lançado.
Já que música e canção são assuntos sérios, este é um espaço para discutir os sons das coisas musicais. Podem ser cantados, tocados, dançados ou ouvidos. Podem também ser altos ou baixos, daqui ou de longe. Não há problema se forem amargos, doces demais ou organizados sob outra lógica. Precisam apenas ser apreciáveis de determinado jeito, entendidos e explicados para que tenham sua beleza revelada. Em suma, é "o som da coisa"!
Mostrando postagens com marcador Todos os olhos. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Todos os olhos. Mostrar todas as postagens
quarta-feira, 26 de outubro de 2011
Assinar:
Postagens (Atom)