Corria o mês de setembro de 1972. Havia no país a ditadura militar e passávamos por uma fase especialmente complicada. Apesar do relativo sucesso do milagre econômico, assistíamos a muita propaganda do regime e vários opositores eram perseguidos, torturados e exilados.
A TV Globo organizou o VII Festival Internacional da Canção (FIC) e uma das concorrentes era tão estranha quanto criativa e instigante. Seu autor cantou-a no Maracanãzinho calmamente e sob imensa vaia, já que pouquíssimos teriam a coragem de aplaudir uma peça musical que de música tinha pouca coisa. Quando era possível decifrar algo, devido ao barulho, não havia melodia, acordes ou ritmo. O que era aquilo? Apenas um cantor surdo às vaias e desligado do caos?
A letra, pronunciada em pedaços com entonações de fala e grito junto de sons sintetizados, quase ruídos, dizia: “Que é que tem nessa cabeça irmão/ Que é que tem nessa cabeça ou não/ Que é que tem nessa cabeça saiba que ela pode irmão/ Que é que tem nessa cabeça saiba que ela pode ou não/ Que é que tem nessa cabeça saiba que ela pode explodir irmão/ Que é que tem nessa cabeça saiba que ela pode explodir ou não”.
Um ouvinte lúcido percebeu que a sobreposição de frases poderia ser um recurso caótico que denunciava a estranha situação do país. Outro pensou que as palavras “cabeça”, “pode”, “ou não” e “explodir”, entrelaçadas daquela forma, poderiam gerar outros significados. Se o caos era constante, pois a rigor não havia música, esses flashes de ideias ficavam na audição. Parecia que algo poderia ser feito, ou não, que um perigo poderia explodir a cabeça de alguém, ou não, que algo existia na cabeça de alguém, ou não... Talvez fosse uma forma poética e, ao mesmo tempo, agressiva de mostrar que a situação não estava bem.
Que estranho.
Mas, quem eram esses lúcidos que viram na canção chamada "Cabeça", naquele momento de exceção, uma obra polêmica, criativa e provocadora? Resposta: o júri do festival, formado pela cantora Nara Leão, o maestro Rogério Duprat, o poeta concretista Décio Pignatari, os jornalistas Roberto Freire e Sergio Cabral, o pianista João Carlos Martins, o empresário dos tropicalistas Guilherme Araújo e os radialistas Mario Luís Barbato, Big Boy e Walter Silva.
E, que ousadia, queriam premiá-la!
Pois algum medo a situação deve ter gerado. Por decisão de alguém muito poderoso (talvez, acima da TV Globo), demitiram o júri, desclassificaram "Cabeça" e deram o prêmio a outras duas que acabaram por não passar pela fase internacional do festival.
Para nossa sorte, Walter Franco, o autor que nada tinha de maluco, gravou-a em seu primeiro disco, chamado "Ou não", lançado em 1973, e tornou-se conhecido como um dos artistas mais criativos e ousados da MPB.
Já que música e canção são assuntos sérios, este é um espaço para discutir os sons das coisas musicais. Podem ser cantados, tocados, dançados ou ouvidos. Podem também ser altos ou baixos, daqui ou de longe. Não há problema se forem amargos, doces demais ou organizados sob outra lógica. Precisam apenas ser apreciáveis de determinado jeito, entendidos e explicados para que tenham sua beleza revelada. Em suma, é "o som da coisa"!
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quarta-feira, 17 de março de 2010
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