O período de Getúlio Vargas foi bastante movimentado na área musical. A censura, que existiu na ditadura do Estado Novo, não foi o único combustível dessa produção. Boa parte da criatividade veio de compositores pobres que viam o rádio e o disco como formas de ascensão social.
Claro que alguns eram malandros, gostavam da boemia e o samba sincopado funcionava como sua trilha sonora. Como lembrou meu amigo Bruno Hoffmann, um desses gênios de origem humilde foi Geraldo Pereira. Nascido em Minas Gerais, em 1918, fez carreira no Rio de Janeiro na Era do Rádio. Gostava de passar as noites em bares da Lapa entre bebidas e mulheres. Com fama de valentão, entrou em muitas encrencas até ser socado por Madame Satã, famoso travesti que vivia no Rio. A precária saúde, debilitada pelo álcool e pelas noitadas, não permitiu que suportasse os ferimentos e faleceu com apenas 37 anos.
Geraldo compunha com o material do dia-a-dia. Seus temas principais eram as mulheres e as relações amorosas. Criou clássicos como Falsa baiana, sucesso com a interpretação de Gal Costa, Bolinha de Papel, gravada por João Gilberto, Acertei no milhar, na ginga de Jorge Veiga, e Escurinha que, entre muitas gravações, ganhou delicadeza na voz de Zizi Possi.
No entanto, teve dois sambas de perfil político-social. Um deles, de 1945, falava bem do trabalho e dos benefícios que o bom funcionário tem: “a princípio meu ordenado/ era pouco e muito trabalho/ aguentei o galho e o tempo passou/ agora fui aumentado/ passei a encarregado/ a minha situação melhorou”. Na realidade, Bonde da Piedade, em coautoria com Ary Monteiro, era mais uma pérola da malandragem do sambista, que estava longe de apreciar um emprego comum!
Outro samba assim foi Ministério da Economia, parceria com Arnaldo Passos, gravado pelo sambista em 1951. Neste, o autor dá um recado em apoio à promessa de Getúlio Vargas, que voltava eleito à presidência, de criar o tal ministério e acabar com o alto custo de vida: “seu presidente/ pois era isso que o povo queria/ o ministério da economia/ parece que vai resolver”. Como a vida no morro era difícil, Geraldo diz que agora poderá trazer de volta sua “nega bacana”, que tinha mandado “meter ‘os peito’ na cozinha da madame em Copacabana”.
O mais engraçado, não fosse a trágica questão social, é que, além de trazer “a minha nega pra morar comigo/ porque já vi que não há mais perigo/ ela de fome já não vai morrer (…) porque gosto dela pra cachorro”, a felicidade seria também dos gatos que não vão mais virar churrasco: “os gatos é que vão dar gargalhada de alegria lá no morro”.
Esse samba teve ótimas regravações, entre elas uma feita por Monarco, amigo de Geraldo, em 1982, e outra do inquieto Jards Macalé, de 1987.
A picardia de Geraldo Pereira só não foi maior que a do próprio Getúlio. O ministério não foi criado e a vida no morro só piorou...
Já que música e canção são assuntos sérios, este é um espaço para discutir os sons das coisas musicais. Podem ser cantados, tocados, dançados ou ouvidos. Podem também ser altos ou baixos, daqui ou de longe. Não há problema se forem amargos, doces demais ou organizados sob outra lógica. Precisam apenas ser apreciáveis de determinado jeito, entendidos e explicados para que tenham sua beleza revelada. Em suma, é "o som da coisa"!
Mostrando postagens com marcador malandragem. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador malandragem. Mostrar todas as postagens
domingo, 1 de agosto de 2010
quarta-feira, 30 de junho de 2010
Izaura e a malandragem no samba
O período da história do Brasil que vai da Revolução de 1930 até 1945 é bastante curioso do ponto de vista da música popular.
A época marcou a ascensão de Getúlio Vargas na política nacional, um golpe de estado em 1937 com a implantação da ditadura do Estado Novo e culminou na sua deposição. É muito conhecida também pela expansão do rádio como veículo de massa e instrumento de controle ideológico da sociedade. Foi o início da chamada Era do Rádio, quando fazer sucesso nas emissoras, em especial na Rádio Nacional do Rio de Janeiro, era a glória para cantores e cantoras.
Deixando o glamour de lado, o rádio foi muito controlado pelo governo. Um dos objetivos era melhorar modos considerados negativos para o país, como o malandro e a ideologia da malandragem, uma das maneiras que negros e mulatos pobres criaram para sobrevivência no novo mundo urbano, preconceituoso e competitivo que se abria.
Muitos sambas compostos entre o final da década de 1930 e início de 1940 foram censurados, sendo liberados apenas aqueles cujas letras enalteciam o trabalho, a família e o Brasil como país promissor. Nessa última categoria, há o clássico exemplo do samba-exaltação de Ari Barroso, Aquarela do Brasil, de 1939.
O dado curioso é que vários compositores eram bem mais malandros que os censores, o que, aqui entre nós, não é novidade alguma. Muitos conseguiam burlar a censura com muita criatividade. Um desses exemplos é o samba Izaura, de Herivelto Martins e Roberto Riberti.
A letra trata de um amor impedido de continuar porque, no dia seguinte, o rapaz precisava ir trabalhar. E ele diz claramente: “o trabalho é um dever / todos devem respeitar / oh, Izaura, me desculpe, no domingo eu vou voltar”. Existe aqui uma incompatibilidade. O homem gosta da mulher e quer ficar com ela. No entanto, pesa sobre ele a responsabilidade do trabalho. Tanto que fala à moça: “seu carinho é muito bom / ninguém pode contestar / se você quiser, eu fico / mas vai me prejudicar / eu vou trabalhar”.
Fica claro que trabalho não combina com prazer. Izaura também não é sua esposa, figura feminina que, pela ótica do Estado Novo, combina com a família e o trabalho. Assim, trabalho é apenas um dever e está longe de agradar a todos. Então, para que trabalhar?
Pode-se imaginar que o samba, sucesso no carnaval de 1945, fora lançado quando o governo Vargas estava no fim, já mais liberal e frouxo com a censura. Mas, não deixa de ser curiosa a forma criativa e inteligente que o compositor encontrou para criticar a ideologia do trabalho, coisa que todo mundo já sabia, exceto os censores.
Para quem quiser ouvir esse samba, conheço duas versões interessantes: uma mais brejeira gravada, em 1965, pelo Demônios da Garoa, e outra cheia de sutilezas feita, em 1977, pelo mestre João Gilberto acompanhado por Miúcha.
A época marcou a ascensão de Getúlio Vargas na política nacional, um golpe de estado em 1937 com a implantação da ditadura do Estado Novo e culminou na sua deposição. É muito conhecida também pela expansão do rádio como veículo de massa e instrumento de controle ideológico da sociedade. Foi o início da chamada Era do Rádio, quando fazer sucesso nas emissoras, em especial na Rádio Nacional do Rio de Janeiro, era a glória para cantores e cantoras.
Deixando o glamour de lado, o rádio foi muito controlado pelo governo. Um dos objetivos era melhorar modos considerados negativos para o país, como o malandro e a ideologia da malandragem, uma das maneiras que negros e mulatos pobres criaram para sobrevivência no novo mundo urbano, preconceituoso e competitivo que se abria.
Muitos sambas compostos entre o final da década de 1930 e início de 1940 foram censurados, sendo liberados apenas aqueles cujas letras enalteciam o trabalho, a família e o Brasil como país promissor. Nessa última categoria, há o clássico exemplo do samba-exaltação de Ari Barroso, Aquarela do Brasil, de 1939.
O dado curioso é que vários compositores eram bem mais malandros que os censores, o que, aqui entre nós, não é novidade alguma. Muitos conseguiam burlar a censura com muita criatividade. Um desses exemplos é o samba Izaura, de Herivelto Martins e Roberto Riberti.
A letra trata de um amor impedido de continuar porque, no dia seguinte, o rapaz precisava ir trabalhar. E ele diz claramente: “o trabalho é um dever / todos devem respeitar / oh, Izaura, me desculpe, no domingo eu vou voltar”. Existe aqui uma incompatibilidade. O homem gosta da mulher e quer ficar com ela. No entanto, pesa sobre ele a responsabilidade do trabalho. Tanto que fala à moça: “seu carinho é muito bom / ninguém pode contestar / se você quiser, eu fico / mas vai me prejudicar / eu vou trabalhar”.
Fica claro que trabalho não combina com prazer. Izaura também não é sua esposa, figura feminina que, pela ótica do Estado Novo, combina com a família e o trabalho. Assim, trabalho é apenas um dever e está longe de agradar a todos. Então, para que trabalhar?
Pode-se imaginar que o samba, sucesso no carnaval de 1945, fora lançado quando o governo Vargas estava no fim, já mais liberal e frouxo com a censura. Mas, não deixa de ser curiosa a forma criativa e inteligente que o compositor encontrou para criticar a ideologia do trabalho, coisa que todo mundo já sabia, exceto os censores.
Para quem quiser ouvir esse samba, conheço duas versões interessantes: uma mais brejeira gravada, em 1965, pelo Demônios da Garoa, e outra cheia de sutilezas feita, em 1977, pelo mestre João Gilberto acompanhado por Miúcha.
Marcadores:
Herivelto Martins,
Izaura,
malandragem,
samba
Assinar:
Postagens (Atom)