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quarta-feira, 17 de março de 2010

Polêmica, provocação e criatividade em época de ditadura

Corria o mês de setembro de 1972. Havia no país a ditadura militar e passávamos por uma fase especialmente complicada. Apesar do relativo sucesso do milagre econômico, assistíamos a muita propaganda do regime e vários opositores eram perseguidos, torturados e exilados.
A TV Globo organizou o VII Festival Internacional da Canção (FIC) e uma das concorrentes era tão estranha quanto criativa e instigante. Seu autor cantou-a no Maracanãzinho calmamente e sob imensa vaia, já que pouquíssimos teriam a coragem de aplaudir uma peça musical que de música tinha pouca coisa. Quando era possível decifrar algo, devido ao barulho, não havia melodia, acordes ou ritmo. O que era aquilo? Apenas um cantor surdo às vaias e desligado do caos?
A letra, pronunciada em pedaços com entonações de fala e grito junto de sons sintetizados, quase ruídos, dizia: “Que é que tem nessa cabeça irmão/ Que é que tem nessa cabeça ou não/ Que é que tem nessa cabeça saiba que ela pode irmão/ Que é que tem nessa cabeça saiba que ela pode ou não/ Que é que tem nessa cabeça saiba que ela pode explodir irmão/ Que é que tem nessa cabeça saiba que ela pode explodir ou não”.
Um ouvinte lúcido percebeu que a sobreposição de frases poderia ser um recurso caótico que denunciava a estranha situação do país. Outro pensou que as palavras “cabeça”, “pode”, “ou não” e “explodir”, entrelaçadas daquela forma, poderiam gerar outros significados. Se o caos era constante, pois a rigor não havia música, esses flashes de ideias ficavam na audição. Parecia que algo poderia ser feito, ou não, que um perigo poderia explodir a cabeça de alguém, ou não, que algo existia na cabeça de alguém, ou não... Talvez fosse uma forma poética e, ao mesmo tempo, agressiva de mostrar que a situação não estava bem.
Que estranho.
Mas, quem eram esses lúcidos que viram na canção chamada "Cabeça", naquele momento de exceção, uma obra polêmica, criativa e provocadora? Resposta: o júri do festival, formado pela cantora Nara Leão, o maestro Rogério Duprat, o poeta concretista Décio Pignatari, os jornalistas Roberto Freire e Sergio Cabral, o pianista João Carlos Martins, o empresário dos tropicalistas Guilherme Araújo e os radialistas Mario Luís Barbato, Big Boy e Walter Silva.
E, que ousadia, queriam premiá-la!
Pois algum medo a situação deve ter gerado. Por decisão de alguém muito poderoso (talvez, acima da TV Globo), demitiram o júri, desclassificaram "Cabeça" e deram o prêmio a outras duas que acabaram por não passar pela fase internacional do festival.
Para nossa sorte, Walter Franco, o autor que nada tinha de maluco, gravou-a em seu primeiro disco, chamado "Ou não", lançado em 1973, e tornou-se conhecido como um dos artistas mais criativos e ousados da MPB.