quarta-feira, 30 de junho de 2010

Izaura e a malandragem no samba

O período da história do Brasil que vai da Revolução de 1930 até 1945 é bastante curioso do ponto de vista da música popular.
A época marcou a ascensão de Getúlio Vargas na política nacional, um golpe de estado em 1937 com a implantação da ditadura do Estado Novo e culminou na sua deposição. É muito conhecida também pela expansão do rádio como veículo de massa e instrumento de controle ideológico da sociedade. Foi o início da chamada Era do Rádio, quando fazer sucesso nas emissoras, em especial na Rádio Nacional do Rio de Janeiro, era a glória para cantores e cantoras.
Deixando o glamour de lado, o rádio foi muito controlado pelo governo. Um dos objetivos era melhorar modos considerados negativos para o país, como o malandro e a ideologia da malandragem, uma das maneiras que negros e mulatos pobres criaram para sobrevivência no novo mundo urbano, preconceituoso e competitivo que se abria.
Muitos sambas compostos entre o final da década de 1930 e início de 1940 foram censurados, sendo liberados apenas aqueles cujas letras enalteciam o trabalho, a família e o Brasil como país promissor. Nessa última categoria, há o clássico exemplo do samba-exaltação de Ari Barroso, Aquarela do Brasil, de 1939.
O dado curioso é que vários compositores eram bem mais malandros que os censores, o que, aqui entre nós, não é novidade alguma. Muitos conseguiam burlar a censura com muita criatividade. Um desses exemplos é o samba Izaura, de Herivelto Martins e Roberto Riberti.
A letra trata de um amor impedido de continuar porque, no dia seguinte, o rapaz precisava ir trabalhar. E ele diz claramente: “o trabalho é um dever / todos devem respeitar / oh, Izaura, me desculpe, no domingo eu vou voltar”. Existe aqui uma incompatibilidade. O homem gosta da mulher e quer ficar com ela. No entanto, pesa sobre ele a responsabilidade do trabalho. Tanto que fala à moça: “seu carinho é muito bom / ninguém pode contestar / se você quiser, eu fico / mas vai me prejudicar / eu vou trabalhar”.
Fica claro que trabalho não combina com prazer. Izaura também não é sua esposa, figura feminina que, pela ótica do Estado Novo, combina com a família e o trabalho. Assim, trabalho é apenas um dever e está longe de agradar a todos. Então, para que trabalhar?
Pode-se imaginar que o samba, sucesso no carnaval de 1945, fora lançado quando o governo Vargas estava no fim, já mais liberal e frouxo com a censura. Mas, não deixa de ser curiosa a forma criativa e inteligente que o compositor encontrou para criticar a ideologia do trabalho, coisa que todo mundo já sabia, exceto os censores.
Para quem quiser ouvir esse samba, conheço duas versões interessantes: uma mais brejeira gravada, em 1965, pelo Demônios da Garoa, e outra cheia de sutilezas feita, em 1977, pelo mestre João Gilberto acompanhado por Miúcha.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Que samba é esse, Fernanda?

Uma interessante experimentação na música popular brasileira tem a ver com o uso de aparelhos eletrônicos (sequenciadores, samplers, bateria eletrônica) e com a figura do DJ. Esses equipamentos criaram possibilidades de realizar colagens antes apenas imaginadas ou feitas com algumas limitações.
Quanto ao DJ, a novidade de uns anos para cá é seu status. Se nas décadas de 1950 e 1960 ele era um importante intermediário entre emissoras de rádio, gravadoras e ouvintes, nos últimos anos ganhou outro caráter ao animar raves, manusear sons em aparelhos eletrônicos e, sem ser tradicionalmente um músico, proporcionar ao público uma música dançante. Nas suas discotecagens, vale a criatividade em mixar trechos de canções, alterar andamentos e timbres, criar efeitos mecânicos (como o scratch – ruídos rítmicos feitos ao movimentar um disco no toca-discos) e eletrônicos (sampling, reverb, pitch etc.).
Mas a tecnologia não faz tudo sozinha. Sempre é necessário alto grau de criatividade e bom repertório. Por isso, cito o trabalho da compositora, musicista e cantora Fernanda Porto, que tem muito a ver com esse cenário. Formada em harmonia, composição e canto lírico e autora de trilhas de filmes, Fernanda pendeu seu trabalho para a música eletrônica, em especial o drum’n’bass, desde o final dos anos 1990. Em 2001, fez uma versão eletrônica do clássico Só tinha de ser com você, de Tom Jobim e Aloysio de Oliveira, e no ano seguinte gravou seu primeiro CD pelo selo Trama, com vários sucessos tocados nas rádios.
Inteligente que é, a divulgação massiva não limitou o trabalho da compositora aos padrões do consumo musical. Uma das faixas mais criativas desse disco é a conhecida Sambassim, de Fernanda e Alba Carvalho. A letra fala da realização de um samba, sem seus instrumentos usuais, por uma pessoa que não sabe nada disso, mas sempre ouviu um batuque. Para realizar a façanha, diz que vai “samplear reco-reco e agogô” e misturar “com guitarra e drum’n’bass / Só pra ver como é que fica / Eletrônico o couro da cuíca”. Se surge a dúvida se esse samba é samba mesmo (“De bit acelerado será que é samba assim?”), ela logo se resolve na afirmativa: “De bit acelerado é samba, sim”.
O legal é que a instrumentação também fala do samba, numa saborosa metalinguagem. Voz e violão somam-se às programações eletrônicas. Não há percussões acústicas, apenas sons sampleados desses instrumentos. O ritmo sincopado do samba, perceptível nos “falsos” pandeiros, apitos e tamborins, se mistura ao drum’n’bass, num paralelo entre a divisão rítmica do agogô, da cuíca e de frases do canto. Por exemplo, quando Fernanda canta o trecho “Vou samplear reco-reco e agogô”, a divisão das notas e das sílabas do canto reproduzem a rítmica desses instrumentos.
Há ainda um dúbio jogo fonético no título da canção: funciona ora como “samba assim”, ou seja, desse novo jeito, ou como “samba sim”, que afirma esse tipo eletrônico de samba. Ao final, fica a sentença positiva na letra: “Sim, ficou um samba, sim / Com pandeiro e tamborim / E já penso que sei tudo de samba / Vou sampleando e sambando, sou bamba”.
Ziriguidum!