sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Chão de estrelas com uma dose de humor

Os clássicos da música brasileira devem ser respeitados? Sim, mas sempre é bom “homenageá-los” com certa dose de humor! Foi o que fizeram Os Mutantes e o maestro Rogério Duprat em 1970 com a canção Chão de estrelas, de Orestes Barbosa e Silvio Caldas.

A letra de Chão de estrelas tinha sido escrita como um poema, todo em decassílabos, por Orestes, que não queria que fosse musicado. Silvio teve muito trabalho para convencer o escritor a transformá-lo numa canção. Depois de aceita a parceria, a música foi lançada em disco em 1937 e se tornou obra-prima do cancioneiro popular com rasgados elogios dos poetas Guilherme de Almeida e Manuel Bandeira. Por exemplo, Bandeira escreveu em 1956 que, para ele, um dos versos mais bonitos da literatura brasileira era “tu pisavas os astros distraída”, referência, na letra e no título, ao teto furado do barraco que deixava pequenos raios do sol bater no chão.

Deve ter sido exatamente esse destaque que moveu Os Mutantes a uma aventura cômica que também ficou na história. O famoso grupo paulista, formado por Arnaldo Dias Batista, Rita Lee, Sergio Dias Batista e os músicos Dinho Leme e Liminha, gravou o clássico no seu terceiro disco A divina comédia ou ando meio desligado. As ideias malucas do arranjo foram partilhadas com o maestro Rogério Duprat, que conheciam desde o célebre disco-manifesto-coletivo tropicalista Tropicália ou panis et circenses, de 1968.
No arranjo, o maestro e os músicos procuraram traduzir nos sons, de forma paródica e engraçada, as situações de desilusão amorosa descritas na letra. A faixa começa como uma valsa tradicional feita por violão e clarinete, com a voz de Arnaldo Batista carregada na pronúncia dos “erres”, nos vibratos e nos prolongamentos das vogais para caricaturar o canto impostado dos seresteiros da época do rádio.
Na segunda parte, quando a letra descreve as cenas, o acompanhamento se transforma em um alegre e debochado dixieland jazz, com banjo, sopros e washboard (literalmente, uma tábua de esfregar roupas usada nos antigos grupos de jazz). Mesclado ao acompanhamento, aparecem vários outros sons metaforizando as frases cantadas: um motor de avião, roupas se rasgando, galos cantando, ranger de portas, tiros de revólver, apupos de plateia de festival, banda de coreto, relógio-cuco etc.
Com as imitações, a proposição era avacalhar as dores de amor que estavam na letra. Mais que isso, se pensarmos na origem da própria canção, estava em jogo ainda a paródia de um clássico da música brasileira. Para completar essas inversões cômicas, o ritmo escolhido, de origem norte-americana, ganhou um tom provocativo numa época de intensos debates nacionalistas contrários à presença de elementos culturais dos EUA na música brasileira, como o rock e a guitarra elétrica.
Não à toa, o disco fora criticado abertamente pelo polêmico e conservador apresentador Flavio Cavalcanti, e quebrado ao vivo em seu programa de TV.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Exercícios titânicos

Pelo menos em sua primeira fase, o grupo Titãs intrigava o ouvinte com a criatividade de algumas músicas, mesmo aquelas mais próximas do padrão de sucesso imediato que tocavam constantemente nas emissoras de rádios. Um caso bem curioso é a canção O Que, de Arnaldo Antunes, última faixa do célebre disco Cabeça Dinossauro (1986). Por causa de seu ritmo – um funk dançante (não é o carioca!) – esta música tocou muito em rádios e nas baladas de final de semana durante boa parte dos anos 80.
Pensando nisso, seria fácil dizer que ela é mais uma daquelas a fazer sucesso e, por isso, pouca coisa teria de interessante.
Ledo engano.
Se ouvirmos com atenção, vamos perceber aspectos, no mínimo, inusitados. O primeiro deles tem a ver com a letra, limitada à frase “Que não é o que não pode ser”. Ela é cantada por Arnaldo repetidamente, em pequenos trechos tirados de dentro dela e mantendo a sequência de palavras: “não é o que não pode / ser que não é / o que não pode ser que não / é o que não / pode ser que não / é”.
A rigor, a frase inteira e seus pedaços não querem dizer absolutamente nada, pois negam-se constantemente. Porém, como as entonações usadas pelo cantor são típicas de frases com sentido, falas comuns de nosso cotidiano, esses trechos parecem significar alguma coisa. Ou seja, colocam o ouvinte numa situação estranha: quando cantada, a letra parece dizer algo por causa da entonação, mas isso não se concretiza tornando-se um completo non sense.
Sua origem é um poema publicado no livro Psia (1986), do próprio Arnaldo. A frase absurda aparece impressa na página escrita no formato de uma circunferência, sem começo, nem fim.
Para fazer o arranjo musical, o grupo construiu uma estrutura também circular e repetitiva: uma frase no baixo em quatro compassos que se repete em toda música, variando apenas os outros instrumentos: baterias acústica e eletrônica, guitarras, vozes, teclados etc. A canção é, assim, um exemplo de minimalismo sonoro e poético: uma célula mínima na música (a frase do baixo) e outra na letra (a sentença estranha) a se multiplicarem ao longo da canção.
Esse choque de estranhamentos é o que dá à canção seu interessante aspecto criativo. Em primeiro lugar, o ritmo é ótimo para a dança, ingrediente que, por si só, atrai facilmente o ouvinte. Em segundo, ninguém presta muita atenção na letra enquanto dança. Aliás, boa parte das músicas de dança não tem letras criativas. E isso destaca O Que das demais típicas canções de sucesso. Se o ritmo embala a dança, a letra joga o ouvinte numa situação de incerteza. Ela acaba por exercitar a atenção e testar os limites da percepção.