Parece não ser novidade dizer que Noel Rosa era um gênio.
No entanto, pode soar estranho tratá-lo assim tamanha a simplicidade que ele possuía ao construir suas letras e melodias. Se gênio é aquele que cria algo rebuscado, hermético, que necessita de vários conceitos para ser entendido, Noel definitivamente não era isso. Porém, se pensarmos que gênio pode ser aquele que observa e capta o detalhe dentro do turbilhão da vida que se abre na nossa frente, então ele pode ser equiparado aos maiores artistas do mundo.
Isso fica nítido num clássico de nossa música popular. Imaginem alguém que entra num bar, pede um monte de coisas sem perder a pompa e sai com a conta pendurada? Pois é esse personagem que Noel retrata na letra de Conversa de botequim, famosa parceria dele com o músico paulista Vadico (pseudônimo de Oswaldo Gogliano), de 1935.
As frases na letra são absurdamente simples por reproduzirem a performance cotidiana da fala. Cantada numa melodia sem exageros e na cadência brejeira do samba, essa fala revela, em tom coloquial, o personagem que conversa com o garçom que o serve. Os acentos tônicos das palavras estão claramente sincronizados com a distribuição dos tempos fortes e fracos da melodia, o que dá uma excepcional naturalidade ao canto.
A cena descrita é digna dos melhores cronistas da nossa literatura. Revela um personagem malandro e folgado, descreve a cenografia do botequim carioca – o “nosso escritório” – como lugar de encontros e sociabilidades, mostra a presença do futebol e dos mosquitos e, por fim, cita outros personagens, entre a contravenção e a legalidade, comuns ao dia-a-dia da cidade: o garçom que limpa a mesa para que o cliente pague logo a conta, o charuteiro, o bicheiro, o patrão e, inclusive, um inesperado Seu Osório dono do guarda-chuva.
A descrição não deixa de lado certos objetos do ritual simbólico do botequim: cinzeiro, caneta tinteiro, revista, um telefone com um cadenciado número – 34-4333 – para ser discado e a despesa do que foi consumido. Há ainda o típico hábito alimentar matinal do brasileiro urbano indicado pela “boa média que não seja requentada/ Um pão bem quente com manteiga à beça/ Um guardanapo e um copo d’água bem gelado”.
A crônica de um botequim num dia ensolarado do Rio de Janeiro revela a fala e o caminhar do povo por meio do personagem que é símbolo da cultura carioca e que só poderia ser assim representado pelo gênio da canção popular brasileira.
E quem não conhece, “Que pendure essa despesa/ No cabide ali em frente”.
Já que música e canção são assuntos sérios, este é um espaço para discutir os sons das coisas musicais. Podem ser cantados, tocados, dançados ou ouvidos. Podem também ser altos ou baixos, daqui ou de longe. Não há problema se forem amargos, doces demais ou organizados sob outra lógica. Precisam apenas ser apreciáveis de determinado jeito, entendidos e explicados para que tenham sua beleza revelada. Em suma, é "o som da coisa"!
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domingo, 16 de maio de 2010
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