Letra de música não é, necessariamente, poema. E vice-versa. Em princípio, a letra se cria em rimas sobre uma estrutura melódica em determinado ritmo e arranjo musical. A poesia, mais autônoma, resolve-se no conjunto concreto das palavras.
Há letras que se aproximam de poemas por conta das peculiaridades e do rigor na combinação das palavras na poesia. Um caso desses é Construção, de Chico Buarque, gravada no LP homônimo de 1971. Suas frases refazem o percurso do dia de trabalho de um operário da construção civil. Todos os versos são alexandrinos (ou dodecassílabos, com 12 sílabas) e, em todo final de frase, Chico colocou uma palavra proparoxítona (com acento na antepenúltima sílaba). O objetivo era traduzir a vida arrastada do operário num ritmo poético também repetitivo: único, último, mágico, sólido etc.
Algumas metáforas são interessantes e revelam flashes dessa vida dura. Por exemplo, o peso e a dor do trabalho aparecem na frase “seus olhos embotados de cimento e lágrima”.
Até que, após erguer “quatro paredes sólidas”, comer “feijão com arroz como se fosse um príncipe” e dançar e gargalhar “como se ouvisse música”, o personagem tropeça e cai do alto do edifício em construção onde trabalha. A cena da queda é descrita como o vôo de um pássaro, até chegar ao “chão feito um pacote flácido”. A agonia de sua morte, em plena contramão, acaba por atrapalhar o tráfego na movimentada rua da cidade.
Porém, esse rigor poético não basta para traduzir o tema em questão. A música nos ajuda ao oferecer outros sentidos. A melodia, em sequências de notas repetidas, revela também a mesmice da vida operária. O ritmo de samba meio lento, cadenciado, com o som triste de um agogô, ecoa a repetição da vida do trabalho braçal e tais escolhas musicais mostram a tristeza da vida.
O arranjo é progressivo. Os instrumentos aparecem pouco a pouco no acompanhamento e “constroem” a cena até culminarem na morte do trabalhador. A partir desse ponto, com o corpo atrapalhando o tráfego, entram metais, cordas e coro produzindo melodias em contrapontos que simulam o trânsito aparentemente caótico de carros, buzinas e barulhos.
A intensidade sonora aumenta e dá o fundo para Chico cantar novamente a letra com a inversão das palavras do final de cada verso. Tal alteração, em meio aos ruídos do arranjo, provoca efeitos estranhos, como se a morte do personagem fosse traduzida nos absurdos irracionais das frases: “Beijou sua mulher como se fosse lógico (…) Ergueu no patamar quatro paredes flácidas (…) Sentou pra descansar como se fosse um pássaro”.
Se letra e melodia são obra de Chico, vale lembrar que o arranjo inovador que emoldura a composição tem como criador o maestro tropicalista Rogério Duprat, infelizmente falecido dia 26 de outubro de 2006.
Já que música e canção são assuntos sérios, este é um espaço para discutir os sons das coisas musicais. Podem ser cantados, tocados, dançados ou ouvidos. Podem também ser altos ou baixos, daqui ou de longe. Não há problema se forem amargos, doces demais ou organizados sob outra lógica. Precisam apenas ser apreciáveis de determinado jeito, entendidos e explicados para que tenham sua beleza revelada. Em suma, é "o som da coisa"!
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quinta-feira, 2 de dezembro de 2010
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