quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Os olhos de Tom Zé

Em 1973, um compositor baiano lançou o polêmico disco Todos os olhos. Ele já havia ganhado o 4º Festival de MPB da TV Record, em dezembro de 1968, com a canção São, São Paulo; já tinha participado do álbum Tropicália ou panis et circencis, com o grupo tropicalista liderado por Caetano Veloso e Gilberto Gil nesse mesmo ano; e, entre 1968 e 1972, havia lançado três discos. Seu nome é Tom Zé, artista experimental por natureza.
No álbum Todos os olhos, temos vários exemplos de sua inventividade, a começar pela letra da faixa que abre o trabalho, Complexo de Édipo, uma doce ironia com os compositores nacionais: “Todo compositor brasileiro é um complexado/ Porque então essa mania danada/ Essa preocupação de falar tão sério/ De ser tão sério/ De sorrir tão sério/ (…) De amar tão sério?”. Além dessa, o LP traz uma heterodoxa interpretação de A noite do meu bem, clássico samba-canção de Dolores Duran gravado por ela em 1959, e a composição Augusta, Angélica e Consolação, que cria uma espécie de conversa entre as ruas paulistanas (uma consolação entre duas ruas femininas!) e retrata ironicamente a geografia da cidade e o perfil social e de consumo dessas ruas.
Mas, a música que dá nome ao disco é o ponto alto do trabalho ao metaforizar, num samba cadenciado, a repressão da ditadura da época. A letra fala de “olhos da escuridão” que sempre o observam na expectativa de que ele saiba de algo, que faça algo, mas o compositor de nada sabe e nada pode fazer: “De vez em quando/ Todos os olhos se voltam pra mim/ De lá do fundo da escuridão/ Esperando e querendo/ Que eu seja um herói, que eu seja um herói/ Mas eu sou inocente, eu sou inocente, eu sou inocente”. O canto é áspero e ocorre sobre o clima de mistério do arranjo, figurando algo soturno que sorrateiramente observa. Em meio aos instrumentos, vozes que murmuram, falam sem sentido, gritam, grunhem denunciam a atmosfera de tensão. Ao final, soa a frase gritada por Tom Zé: “Eu sou inocente!”.

Essa música também inspirou a arte da capa do LP, criada pelo poeta Décio Pignatari: em primeiríssimo plano, a foto de uma singela bolinha de gude suavemente pousada no orifício de algo que parece um cu. Pelo formato, sugere uma segunda leitura, mais óbvia, que é a relação da imagem com o desenho do olho. Na verdade, esse tal “olho do cu” nada mais era do que uma boca cujos lábios sustentavam a bolinha para disfarçar o dito cujo, ou o dito olho, como bem explicou o autor da foto e hoje escritor Reinaldo Moraes.
Alguns dizem que era plágio da capa do disco Die Grüne Reise, de 1971, do grupo alemão A.R. & Machines, liderado pelo guitarrista Achim Reichel. Bobagem. Nessa, há três bocas justapostas parecendo uma rosa e com a bolinha na boca do meio. A do disco do Tom tem desenho diferente e sentido mais denso relacionado à época de censura em que foi lançado.

Nenhum comentário:

Postar um comentário