sábado, 22 de dezembro de 2012

O fim do mundo em duas versões

Pronto. Hoje já é dia 22 de dezembro de 2012 e o mundo não se acabou.
Pode parecer insólita a atual interpretação enviesada do tal calendário maia, mas a questão é que um ou outro deve ter acreditado mesmo no apocalipse em pleno início de verão. A posição dos números e a mística do antigo povo devem ter abalado a neurose da vida que se leva por aqui. Mesmo que fosse apenas uma notícia engraçada, mesmo que disséssemos que não acreditávamos nesse fim, a verdade é que lá no fundo, bem no fundo, alguns devem ter tratado de fazer aquilo que não fizeram até agora.
Curiosamente, a música brasileira traduziu esses sentimentos e sensações em, no mínimo, dois momentos, com duas ênfases distintas. A primeira foi com o mestre Assis Valente, que compôs E o mundo não se acabou, gravada em 1938 por Carmen Miranda e regravada por Adriana Calcanhoto em 2000. Nesse samba-choro, cheio de bossa e brejeirices, Carmem canta as loucuras que chegou a fazer a partir de um boato sobre o fim do mundo.

A rigor, a letra mostra os desejos que, nos anos 1930, não poderiam ser saciados. A notícia, pura “conversa mole”, indicava uma oportunidade que não poderia ser perdida! Como se corria o risco de o caos ser mesmo instaurado (como o sol nascer antes da madrugada), a personagem tratou de aproveitar a situação para descontar tudo que lhe era proibido: “E sem demora fui tratando de aproveitar/ Beijei a boca de quem não devia/ Peguei na mão de quem não conhecia/ Dancei um samba em traje de maiô”. Como a história era boato, tudo se complicou com as consequências: “Chamei um gajo com quem não me dava/ […] E festejando o acontecimento/ Gastei com ele mais de um quinhentão/ Agora eu soube, que o gajo anda/ Dizendo coisa que não se passou”.
Esse jeito feliz de festejar o fim do mundo não aparece na composição de Paulinho Moska e Billy Brandão, O último dia, gravada por Moska em 1995.

A música, de cadência lenta e marcial, revela certa melancolia, sobretudo nos solos de violoncelo. Na letra, não é mais o personagem alegre que age com a hipótese do fim próximo, mas é ele quem questiona seu amor sobre o que faria no caso de ser aquele o último dia. Se os desejos não são mais tão nítidos, revelam-se as críticas do personagem à pessoa amada e à vida. Por exemplo, ele pergunta se a figura não iria ao shopping ou à academia “Pra se esquecer que não dá tempo/ Pro tempo que já se perdia”. Ou ainda, demonstra que seu interlocutor é superficial em sua vida ao questionar: “Ia manter sua agenda/ De almoço, hora, apatia/ Ou esperar os seus amigos/ Na sua sala vazia”.
Agora, entre essas duas opções, me diga você: o que faria se só lhe restasse o dia de hoje?

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

O parque heterodoxo do Baleiro

O primeiro disco de Zeca Baleiro (Por onde andará Stephen Fry?, de 1997) tem faixas interessantes e reveladoras da criatividade desse compositor maranhense que sempre adorou comer doces, balas e guloseimas. Merecem destaque Stephen Fry, Heavy metal do Senhor, Flor da pele, Salão de beleza e o pagode Kid Vinil. Mas, além dessas, uma chama a atenção pelo insólito dos arranjos e da letra: O parque de Juraci, criada pelo próprio compositor e por ele denominada um “tecnoxaxado”.
A letra fala do convite feito por Juraci para um passeio em um parque. Porém, para espanto do convidado, ao chegar ao tal lugar, percebe que é um simples restaurante self-service por quilo. Por mais que já pareça insólita a situação, a maneira de descrevê-la é fundamental: “Já no caminho eu comi um churrasquinho de charque / E um suco de sapoti / E foi ficando divertido pra caramba / Juraci dançando samba enquanto eu lia O Guarani”. Com a revelação absurda, sua reação vai do choque ao ódio: “Juraci que parque / Juraci que parque / Juraci que parque é esse que eu nunca vi / Juraci que parque / Juraci que parque / Juro por deus que quebrei o pau com Juraci”.
O desapontamento do personagem com a tal mulher é claro e isso é trazido para a letra cantada. Os encaixes entre as palavras no canto e o ritmo sincopado fazem com que algumas frases tenham forte apelo rítmico e tom lúdico, como é típico das cantorias nordestinas, como na embolada, por exemplo. Aqui, observamos a profusão de rimas em “i” (sapoti, Birigui, Guarani) e as construções em duplo sentido: quando cantado, “Juraci que parque” se transforma em “Jurassic Park”, famoso filme do diretor Steven Spielberg, a quem a canção é oferecida. Não posso afirmar, mas a letra engraçada e o tal parque da Juraci soam para mim uma crítica debochada ao absurdo do filme. Mas, isso é mera impressão...

A música é um tecnoxaxado, ou seja, um tradicional xaxado nordestino feito com modernos instrumentos eletrônicos. Assim, o surrealismo da história é acompanhado por samplers de vozes e solos de sintetizador e de uma guitarra distorcida sobre a batida de um baixo eletrônico.
Além disso tudo, Baleiro divide a cantoria com um dos grandes mestres do forró: ninguém menos do que Genival Lacerda, famoso por sucessos como Severina xique-xique. Genival canta trechos e pontua frases, às vezes engraçadas, em diálogo com o compositor.

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Cesar Villela e as capas de disco da Elenco

Para os mais novos, até algum tempo atrás, toda música gravada era fixada em um suporte chamado disco que, por sua vez, vinha dentro de uma capa de cartolina. Essa embalagem, aparentemente simples, ganhou status de arte no Brasil entre o final dos anos 1950 e início dos 1960 e o marco dessa virada foram os trabalhos do designer Cesar G. Villela.
Antes do LP de vinil (long playing), havia os bolachões de 78 rpm com uma música de cada lado. Eles eram lançados em função do sucesso das canções e as capas eram de papel com o nome da gravadora e um buraco no meio através do qual se via o selo redondo do disco com as informações. O máximo em termos de produção visual ocorria em lançamentos especiais de caixas contendo vários 78s de determinado artista.
A arte gráfica em capas se desenvolveu com os LPs que traziam mais faixas gravadas e maior espaço de ilustração. Lançado pela Columbia nos EUA em 1948, ainda com 10 polegadas de diâmetro – aumentado para 12 em 1952 –, esse formato possibilitou que artistas visuais traduzissem o som do disco em imagens que, como nas embalagens, facilitam a venda.
Aqui no Brasil, o LP foi lançado em 1952 e, no final da década, Cesar Villela iniciava sua trajetória de ilustrador na Odeon. Ele buscou maneiras de eliminar as imagens tradicionais usadas – foto posada do cantor, paisagens bucólicas, mulheres bonitas etc. – e substituí-las por soluções visuais menos rebuscadas que produzissem comunicação rápida em compasso com a modernidade das artes gráficas.
(1959)

A guinada inventiva aconteceu quando foi convidado por Aloysio de Oliveira (músico, que acompanhara Carmen Miranda aos EUA com o Bando da Lua, e produtor) que, em 1963, fundou o selo Elenco e começou a gravar o pessoal da bossa nova. Não apenas por falta de dinheiro para grandes gastos com capas, mas também por conta do projeto que Villela já testava, os discos da pequena gravadora, além de trazerem a nata da música brasileira da época, produziram uma verdadeira revolução gráfica.
Os trabalhos do designer, em parceria com o fotógrafo Chico Pereira, se caracterizavam pelo uso do preto e branco, fotos em alto contraste, elementos gráficos trabalhados nas letras (nome do artista, nome do disco etc.) e, quase sempre, quatro bolinhas vermelhas mescladas às imagens, sendo que uma era do logo criado para o selo. Segundo o próprio artista, o propósito era ter uma imagem limpa, econômica e de comunicação imediata.
(1964)

(1967)

Essa aventura inovadora não durou muito. Em 1964, Villela aproveitou a instabilidade política e os amigos de música que saiam do país e foi para os EUA. Aloysio não suportou a concorrência e vendeu a Elenco para a Philips em 1967. Mas, o revolucionário projeto gráfico tornou-se a grande marca visual não só desse selo, mas da bossa nova. Ficou ainda na história do disco, imitado por muitas gravadoras.

terça-feira, 8 de maio de 2012

Oposições em "El negro del blanco"

Pode parecer chover no molhado, mas a velha máxima de que os opostos se aproximam encontra pleno sentido no disco El negro del blanco, gravado por Paulo Moura e Yamandú Costa e lançado em 2004 pela Biscoito Fino.

A oposição mais evidente está no nome do CD e em sua capa: o moreno septuagenário de blusa branca ao lado do rapaz gaúcho de camisa preta e ambos sobre o nome negro, escrito em branco, e blanco, escrito em preto. Além dessa aparência, a junção de ambos é raro momento de convivência daquilo que, na verdade, nunca foi distante.
Falecido em julho de 2010, o clarinetista Paulo Moura era desses instrumentistas de formação integral e larga experiência. Criado em família de músicos de São José do Rio Preto (SP) e formado em conservatórios, orquestras de rádio, bossa nova, choro e jazz no Rio de Janeiro, Paulo revela a tradição do negro na música instrumental brasileira ao sincretizar seu gingado à música europeia. Já em Yamandú, também criado em família musical, a síntese é plena por ser um jovem músico da fronteira, espaço cultural que junta facilmente o Brasil às tradições latino-americanas. Em seu violão de sete cordas soa tanto o choro carioca como tangos, guarânias, valsas e chamamés.
Tudo isso se materializa no repertório do CD. De um lado, o clarinetista traz a tradição brasileira em choros de Severino Araújo (Um chorinho em aldeia) e do mestre Jacob do Bandolim (Simplicidade) e em sambas de Baden Powell; de outro, Yamandú incorpora canções do argentino Astor Piazzola (Decaríssimo), o clássico Gracias a la vida da chilena Violeta Parra, até chegar a Cuba, com De camino a la vereda, de Ibrahim Ferrer, famosa pela gravação no disco Buena Vista Social Club, de 1996.
A rigor, as oposições estão além dessas evidências. Ao ouvir os arranjos, percebe-se aquilo que entranha cada músico. O clarinete soa suave e concentrado. Mesmo ao demonstrar destreza em solos e improvisos, o que ouvimos não é apenas agilidade, mas a certeza de quem sabe que a velocidade não é o principal. Revela, no fundo, a experiência do ancião, a calma que existe naqueles que já trilharam longos caminhos de vida e de música.
O excelente violonista gaúcho é o oposto. Basta vê-lo ao vivo no palco para entender que o que se ouve em El negro del blanco é resultado de sua performance intensamente barroca. Seus gestos certeiros são pungentes e fazem as cordas parecerem rasgar sua alma. Seu violão é forte, saliente, rápido e preciso, sempre em claro contraponto à suavidade das melodias do sopro. Se a intensidade de Yamandú é juvenil, daqueles que sabem o que desejam e que têm potencial para chegar lá, Paulo Moura, ao contrário, já chegou. Isso não significa que não estivesse aprendendo com o jovem gaúcho. Mais que tudo, o clarinetista sabe aprender.
Volúpia e serenidade: este é o resultado do feliz encontro de Yamandú Costa com Paulo Moura.

domingo, 1 de abril de 2012

Os Móveis de Brasília

Se você pensa que a música de Brasília se resume aos grupos de rock dos anos 1980, está muito enganado. A capital é berço de uma das principais bandas alternativas do momento, com canções bem feitas, shows lotados e performance de palco contagiante. Falo do Móveis Coloniais de Acaju.
A turma surgiu em 1998 fazendo festas e bailes na cidade. O trabalho foi crescendo até tocarem em outros lugares e gravarem, em 2004, o primeiro CD – Idem – em regime independente, lançado no ano seguinte. Depois de muitos festivais pelo Brasil e de uma turnê pela Europa, gravaram na Trama seu segundo disco, com produção do conhecido Carlos Eduardo Miranda. O CD c_mpl_te (complete), lançado em 2009, foi muito bem recebido e tem sido base das apresentações da banda.
Aliás, um dos segredos do sucesso dos 9 músicos (!) é a atuação ao vivo. Sem coreografias ensaiadas, sem foco único, mas cheio de brincadeiras, sorrisos e conversas, o público se diverte dançando e cantando, o que revela relação mais franca com a plateia. Pelo menos foi o que vi num show recente em São Paulo. Um momento interessante foi quando, quase ao final, o vocalista André González pede para as pessoas no teatro (lotado) deixarem o meio da plateia livre e ficarem nos lados e ao fundo. Quando o espaço se abriu, os músicos desceram, tocaram e cantaram rodeados por todos numa comunhão difícil de ver.
Quanto à música, o repertório gira em torno do ska, rítmico jamaicano dançante. Mas, no ska do Móveis há citações do rock e da música brasileira, o que deixa o grupo muito mais perto da tradição de misturas da cultura musical nacional.
Nesse segundo disco, é possível ouvir bem arranjos e letras, ambos de ótima qualidade. No som, a base rítmica da “cozinha” (baixo e bateria) sustenta com firmeza e suingue a guitarra, os teclados e os fraseados de quatro instrumentos de sopro: flauta, sax tenor, sax barítono e trombone. Nas vozes, além do coro, ouvimos um cantor sincero e sem afetação. Nas letras, o tema do amor é recorrente, mas tratado com inteligência e criatividade, longe dos lugares comuns ouvidos por aí.
A faixa O Tempo, do segundo CD, é das mais interessantes. Não apenas pela canção em si, mas também pelo clipe produzido para ela. O filme foi todo feito em plano-sequência (uma câmera filmando sem cortes), gravado e transmitido ao vivo pela internet com interação com o público e a participação dos grafiteiros do KollorsKingz. O objetivo do diretor Steve ePonto era trabalhar noções de tempo com câmera acelerada enquanto os músicos cantavam e dançavam atrás de um vidro sendo grafitado. (Ver abaixo.)
Móveis Coloniais de Acaju é desses raros casos de boa música e performance autêntica, longe das bizarrices do pop mais açucarado. Além disso, é exemplo de gerenciamento próprio de uma banda-empresa, pitacos de gravadora.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Os "instrumentos" do Vocal Sampling

Há músicos que dedicam anos de suas carreiras em aperfeiçoar a execução de um instrumento musical. Tocam, experimentam, desdobram-se em métodos e estudos para retirar dele todas as sonoridades que imaginam poder produzir. Alguns desses músicos interagem tão fortemente com seus instrumentos que ambos parecem ser uma coisa só, tamanha intimidade que constroem.
Há, porém, aqueles que, sem instrumentos musicais, criam com estupenda perfeição harmônica, rítmica e melódica. Se eu disse sem instrumentos, retifico: eles podem usar a própria voz e o próprio corpo. Refiro-me, especificamente, ao grupo vocal cubano Vocal Sampling, formado por seis cantores que arranjam e cantam músicas a cappella, expressão em italiano que indica canto sem acompanhamento instrumental. Alguns do grupo cantam a letra da canção enquanto os outros fazem a harmonia, reproduzem com a voz instrumentos de sopro (trompete, saxofone etc.), percussões (bongô, tumbadoras, claves etc.) e ainda trabalham o som corporal (palmas, ruídos com a boca, batidas no corpo com as mãos etc.).
O grupo foi criado por estudantes da Escola Nacional Superior de Arte de Havana em 1992 e, hoje, é formado por René Baños Pascual (regente), Abel Sanabria Padrón (percussão), Reinaldo Sanler Maseda (tenor), Jorge Núñez Chaviano (tenor), Renato Mora Espinosa (tenor) e Oscar Porro Jiménez (barítono). O sucesso cresceu durante a década de 1990 até chegar aos ouvidos do cantor de jazz Bobby McFerrin e de outros do pop, como Peter Gabriel, David Byrne, Carlos Santana, Paul Simon e Quincy Jones, que adoraram o trabalho dos cubanos. Em 1995, fizeram uma turnê pelos EUA e, em 1996, participaram do 30º Festival de Jazz de Montreux, Suíça. Depois vieram outras apresentações no Japão, na Europa, nos EUA e América Latina, sempre com destaque da crítica.
Ouvir a música do Vocal Sampling é uma fantástica experiência. Cada instrumento que imaginamos ter em uma canção está ali nas vozes de cada um deles. E não basta afinação. É preciso ter um absoluto controle do ritmo e grande organização harmônica das vozes. Como cubanos, conhecem a fundo a alma dos gêneros da ilha: rumba, son, bolero, guaracha e salsa. Um exemplo é o arranjo para Guantanamera, um clássico da música da ilha.

O corpo de cada um deles se transforma nas performances ao vivo. A apresentação de Hotel Califórnia, gravado pelo Eagles em 1976, é outro exemplo. No arranjo, os músicos-cantores reproduzem instrumentos do rock (em especial, a bateria, com pratos, caixa e ton-tons) e o famoso solo de guitarras em dueto, com direito a air guitar.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Samba e política em mais um Zé, o Zé do Caroço

Nos anos 1970, o policial aposentado José Mendes da Silva morava no morro do Pau da Bandeira, ao lado do Morro dos Macacos, no bairro carioca de Vila Izabel. Conhecido como Zé do Caroço e dedicado às causas de sua comunidade, colocou um alto-falante na laje da sua casinha para transmitir notícias importantes aos moradores da redondeza. Até que a esposa de um militar que morava na rua Petrocochino, próxima do morro, reclamou à polícia que o barulho do serviço de alto-falante a incomodava quando assistia à novela.
A história da ação contra a comunidade na época da ditadura foi contada à compositora Leci Brandão que com o tema compôs, em 1978, o samba Zé do Caroço. De tom engajado, a letra retrata o nascimento de um líder comunitário que batalha e “que malha o preço da feira” para ganhar a vida. Diz que ele defende seu povo e o direito deles à informação alternativa, fora, portanto, da alienante televisão “que distrai toda gente com sua novela”. Por isso é “que o Zé bota a boca no mundo/ Ele faz um discurso profundo/ Ele quer ver o bem da favela”. Noutro trecho, a compositora lamenta não haver uma figura como essa no morro da Mangueira, local que frequentava há anos, para mostrar a todos que “Carnaval não é esse colosso/ Nossa escola é raiz, é madeira”.

A composição tem a cara de Leci Brandão, figura ligada à Mangueira, à cultura popular e às causas sociais. De ritmo acelerado e perfil de samba de raiz, a canção foi proibida pela gravadora Polydor quando a sambista iniciava as gravações de seu sexto disco, que sairia em 1981. Não contente e determinada, rescindiu contrato e só gravou outro LP em 1985, já na gravadora Copacabana, com a polêmica faixa no repertório.
Zé do Caroço não é obra datada. Ao contrário, tem vida longa e se desdobra em beleza quanto mais antiga fica. Suas regravações são prova disso. No seu primeiro disco, em 1993, o grupo paulista Art Popular registrou o samba. Em 2000, o grupo carioca Revelação, também em seu primeiro trabalho, incluiu Zé do Caroço.

Se em ambos a estrutura rítmica foi mantida, Seu Jorge deu-lhe nova roupagem, no DVD de 2005 com Ana Carolina, e mostrou como o tema continuava atual. Com sua voz grave e potente e apenas o violão, o cantor diminuiu o andamento para tornar o samba mais arrastado e escancarar a densidade da letra. No ano seguinte, era a vez de Mariana Aydar, também em seu primeiro disco (Leci é madrinha de muitos!), render homenagem ao clássico regravando-o na cadência lenta e com mais introspecção. Por fim, novamente na voz de sua criadora, a música entrou na trilha sonora do filme Tropa de Elite 2, uma das maiores bilheterias do cinema nacional.
O seu José Mendes da Silva faleceu no início dos anos 2000, sabendo que sua história fora imortalizada cantada em verso e prosa. Só não presenciou a instalação de uma Unidade de Polícia Pacificadora no Morro dos Macacos no final de 2010 para acabar com a influência de traficantes. Mas, a novela da TV continua...

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Jazz do Peru

Se o jazz já se tornou uma linguagem universal, não é estranho que haja um grupo desse tipo no Peru. Ao mesmo tempo, se a música norte-americana se espalhou pelo mundo, ela não ficou livre de contatos e misturas com outros sons regionais. Pois é o que ocorre nos trabalhos de vários músicos e grupos de jazz na América Latina. Muitos deles trabalham numa chave híbrida, ou seja, com a mescla dos elementos musicais globalizados e os das tradições locais.
Este é o caso do grupo Perujazz, criado em 1984, em Lima, capital peruana. Um álbum muito interessante é o duplo Perujazz en vivo. Suas qualidades estão na experimentação e na criatividade das fusões dos ritmos e instrumentos peruanos com a linguagem livre do jazz contemporâneo.
A formação é bastante inusitada. Por ser composto de contrabaixo (David Pinto), saxofone (Jean-Pierre Magnet), bateria (Manongo Mujica) e percussão (Julio Chocolate Algendones) – portanto, sem um instrumento típico de harmonia, como piano, violão ou guitarra –, o som do grupo soa bastante original.
As melodias são trabalhadas, em muitas faixas do disco, pelo sax e pelo baixo em uníssono, o que resulta numa sonoridade curiosa. Às vezes, algumas músicas lembram as do grupo Weather Report. As semelhanças estão na presença das percussões (Alex Acuña, também peruano, e o porto-riquenho Manolo Badrena, no caso do WR), na proximidade entre os timbres dos baixos do peruano David e de Jaco Pastorius e nos saxes de Wayne Shorter (WR) e de Jean-Pierre.
No entanto, as diferenças são grandes. Neste CD, gravado ao vivo em 30 de novembro de 2001, Chocolate e Manongo são elementos centrais. É pelos seus instrumentos – entre eles, cajon, djembé, cencerro (gonguê), vibrafone e congas – que flui a alma das tradições musicais afro-caribenhas e afro-peruanas costeiras e andinas. São os casos da marinera, dos toques de santeria (o “candomblé” cubano), da rumba, do mambo, entre outros ritmos utilizados.
Algumas criações, sempre coletivas e baseadas na experimentação e no improviso, homenageiam músicos importantes, entre eles, o beatle George Harrison (composta quando ele morreu), o trompetista do jazz Miles Davis e o cubano Perez Prado, o Rei do Mambo. Uma faixa de destaque é El tren (3ª do disco 2). Nela, as percussões (o cajon e o steel drum, um tambor metálico de Trinidad) imitam a dinâmica sonora do trem, próximo ao que fez Villa-Lobos em Trenzinho caipira. Segundo o encarte do disco, este tema foi tocado num presídio na Itália e preocupou os guardas, pois fez com que os detentos gritassem com as sensações acústicas de liberdade!

O disco é representativo do trabalho do grupo, que já tocou em festivais de jazz na América e na Europa. O fato de ter sido gravado ao vivo faz com que suas experiências apareçam claramente e revelem ao ouvinte todas as atmosferas sonoras criadas por Perujazz.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

O Revolver dos Beatles

Como escrevi no post de 14/ago/2010, o disco Rubber Soul (1965) foi, na carreira dos Beatles, o início da transição das músicas românticas e juvenis para a criação mais experimental e inovadora que se consagraria no famoso LP Sgt.Pepper’s Lonely Hearts Club Band (1967). Nessa transição, houve um álbum de importância crucial: Revolver, lançado em agosto de 1966. Nele, já estavam instaladas as bases do que seria o Sgt. Pepper’s.
Em primeiro lugar, a capa traz a psicodelia da época numa colagem de fotos e desenhos em preto e branco. Depois, a temática amorosa nas letras não é mais a única. Além de Here, there and everywhere (Lennon/McCartney), uma das mais belas canções de amor, há Taxman, de George Harrison, que critica a cobrança de altos impostos no Reino Unido, Eleanor Rigby (Lennon/McCartney), que traça o perfil de uma personagem triste, e I’m only sleeping, em que John canta a preguiça de ficar jogado na cama assistindo ao mundo passar.
O contato com as drogas, iniciado no ano anterior, aparece em She said, she said (Lennon/McCartney), composta após uma festa regada a LSD e com a presença do ator Peter Fonda. As sensações provocadas pelas substâncias alucinógenas são traduzidas nos arranjos que abusam dos efeitos de estúdio possíveis na época, como fitas tocadas em sentido inverso, ruídos gravados sobre a melodia, vozes soltas etc.

A ligação com a música oriental está indicada nos arranjos com o sitar indiano e as tablas em Love you to (Harrison). Esse disco traz três composições do guitarrista, o maior número em relação a outros álbuns dos Beatles.
As experiências de estúdio são um dos pontos altos do trabalho. O produtor George Martin e o engenheiro de som Geoff Emerick (este com apenas 20 anos de idade) se esmeraram para criar condições técnicas para as loucuras da banda. Por exemplo, como as mesas de gravação da época limitavam-se a 4 canais e havia a necessidade de mais para o registro de instrumentos e efeitos, os técnicos lançaram mão de gravações em sequência de partes do arranjo. Por exemplo, em Eleanor Rigby, o quarteto de cordas foi gravado numa mesa e mixado. Depois, esse acompanhamento foi colocado em um dos canais de outra mesa e os três canais restantes foram usados para as vozes. Várias canções desse álbum foram registradas dessa forma, para usar instrumentos e fontes sonoras alternativas.
Outros equipamentos usados foram as caixas Leslie e o Artificial/Automatic Double Tracking (ADT) na voz. As caixas criavam mecanicamente um efeito de “espacialização” no som gravado (uma espécie de reverberação) e, com isso, proporcionaram nova ambiência sonora em estúdio. O ADT consistia na gravação dobrada para dar a sensação de chorus. Eles são percebidos no canto de John em Tomorrow never knows (Lennon/McCartney), cuja letra se baseava em textos de Thimothy Leary, o papa da contracultura. Junto dos efeitos, o instrumental mistura loopings de fitas gravadas, vozes e o sitar.

Aos nossos ouvidos, tais articulações podem parecer primitivas. Mas, o que se deve observar em Revolver é a sintonia entre invenção artística e criatividade na exploração de técnicas e equipamentos de gravação.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

A música do Treminhão

Ninguém duvida quando se fala que há grande diversidade musical em Pernambuco. Desde os tradicionais maracatus, cocos e cirandas, passando pelos bambas do frevo, os armoriais, o rock dos anos 1970 e, finalmente, o rico manguebeat, o estado sempre nos tem brindado com boa música e criatividade. É por isso que visitar Recife sempre proporciona boas surpresas. Em 2008, conheci o CD do grupo Treminhão, um trio instrumental surgido em 2003.
A audição do disco revela Breno Lira, Ricardo Fraga e Marcos Mendes, jovens músicos da capital pernambucana, como grandes mestres. Em 13 faixas, trazem o melhor da música instrumental brasileira pautada no improviso e nas harmonias jazzísticas, em misturas bem dosadas com ritmos da rica tradição nordestina e com a potência roqueira. Os três instrumentistas passaram pelo Conservatório Pernambucano de Música e pelo curso de música da Universidade Federal de Pernambuco, trabalham em estúdios, tocam em orquestras e lecionam, o que revela empenho nos estudos e seriedade na atividade musical.
Em todas as gravações do álbum é possível perceber a qualidade técnica dos músicos e o conhecimento da música popular. Breno Lira esbanja habilidade na guitarra, no violão e na viola, a ponto de ser elogiado por Heraldo do Monte em texto na capa do CD. Marcos acompanha a tradição dos grandes baixistas do país, ao lado de Arthur Maia, Pixinga, Arismar do Espírito Santo e do falecido Nico Assumpção. Já o baterista Ricardo Fraga mostra que conhece os ritmos nordestinos, as sutilezas do jazz e o pulso firme do rock. Juntos, os três se sustentam mutuamente em ótima simbiose.
Nas composições, todas próprias, há baião, xote, coco, maracatu rural e nação, caboclinho, sempre temperados com guitarra distorcida ou com o som seco da viola. As variações harmônicas são desconcertantes, os improvisos abusados, cheios de modalismos, às vezes beirando o atonal, como se percebe nas músicas Baião para Edvaldo, Sertão e Xote louco (mescla de xote, reggae e jazz).

As músicas Treminhão e Sedna são dois jazz-rocks com solos de guitarra bem distorcidos e “sujos”. Nesta segunda, o solo de baixo é feito em uníssono com a voz do baixista. Outra faixa interessante é 1º de Julho, de Marcos Mendes, que traz uma coletânea de ritmos e tem a melodia executada pelo baixo.
O Treminhão tem seus convidados especiais no disco, que mostra também o vínculo com a cultura musical local. Entre eles, estão Egildo Vieira (pífano), Gustavo Azevedo (rabeca), Maciel Salú (voz em Peleja), Tarcisio Rezende (pandeiro) e Tomás Melo (alfaias).
Esse é um daqueles trabalhos feito por quem sabe tocar especialmente para quem sabe ouvir!