quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Suicídio natalino


As recentes comemorações do Natal nos fazem lembrar da marchinha Boas festas, gravada por Carlos Galhardo e os Diabos do Céu, em 1933, com orquestração de Pixinguinha. Tremendo sucesso naquele ano e em vários outros, certamente está nos ouvidos de muita gente até hoje: “Anoiteceu/ O sino gemeu/ A gente ficou/ Feliz a rezar/ Papai Noel/ Vê se você tem/ A felicidade/ Pra você me dar”.
Composta um ano antes por Assis Valente, mulato baiano que veio ao Rio de Janeiro ganhar a vida, a canção tem forte tom melancólico contraposto à alegria natalina. O próprio Assis explicou o momento de inspiração: “Eu estava em Icaraí, longe da família e sem notícias dos meus. Uma tristeza forte me invadiu pouco a pouco”. Um quadro pendurado na parede com o desenho de uma menina impressionou o compositor e levou-o a pedir ao Bom Velhinho a felicidade de volta. Como ela não foi trazida, sua conclusão está no trecho da canção: “Já faz tempo que eu pedi/ Mas o meu Papai Noel não vem/ Com certeza já morreu/ Ou então felicidade/ É brinquedo que não tem”.
No fundo, a letra revela a tristeza na vida de Assis. Separado da mãe, fora criado pessimamente por outra família. Viveu em circo e trabalhou numa farmácia até chegar ao Rio para se tornar protético. Em 1932, teve sua primeira composição gravada com sucesso pela cantora Araci Cortes, o samba Tem francesa no morro, cuja letra satirizava o uso frequente do francês no vocabulário das pessoas.
Daí para frente teve muitas músicas solicitadas por cantores. Conheceu Carmen Miranda, sua maior intérprete, para quem compôs sucessos como E o mundo não se acabou, Camisa listrada e Recenseamento. Até que, em 1939, Carmen foi para os EUA e deixou de gravar suas canções. Até mesmo o famoso samba-exaltação Brasil pandeiro fora descartado pela Pequena Notável e gravado pelos Anjos do Inferno em 1940.
Nos anos 1940 e 1950, suas composições foram pouco a pouco sendo deixadas de lado por cantores famosos. Acumulou dívidas e sua vida piorou. Esses problemas e outros particulares fizeram-no, por duas vezes, tentar pôr fim à vida: numa delas, jogou-se do Corcovado, mas foi salvo por um galho de árvore; noutra, cortou os pulsos com navalha e novamente teve salvação. O suicídio só ocorreu em 11 de março de 1958, ao tomar cianeto com guaraná. 
Por sua qualidade, a obra de Assis Valente nunca deixou de ser gravada. Uma das mais recentes é o samba Alegria, no primeiro CD de Vanessa da Matta. Recebeu também inúmeras homenagens de variados intérpretes. Certamente, a mais honesta e polêmica foi feita em 23 de dezembro de 1968, na TV Tupi, no programa Divino Maravilhoso, comandado por Caetano Veloso e Gilberto Gil em plena revolução tropicalista: ao vivo, Caetano cantou Boas festas olhando para a câmera com um revólver apontado para sua cabeça.

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