domingo, 30 de maio de 2010

A sonzeira do Funk Como Le Gusta!

Ouvindo o trabalho dos grupos que existem aos montes no Brasil, sinto falta de uma formação instrumental com um som potente, bem tocado e contagiante: uma banda! Não me refiro às bandas de rock, nem exatamente àquelas militares ou as de coreto, muito comuns antigamente e que animavam os passeios pelas praças. Mas, uma mescla (ou modernização) a partir da incorporação do naipe de metais e do set de percussão ao básico quarteto guitarra-piano-bateria-baixo.
Penso nisso ao ouvir um CD do grupo Funk Como Le Gusta chamado Roda de Funk (ST2 Records, 2000). Para quem não conhece, é uma banda desse tipo formada nos anos 1990 pela cozinha rítmica (bateria, baixo e percussão), mais guitarra, teclado, o maravilhoso naipe de sopros (sax, trompete, trombone, flauta etc.) e, dependendo da música, uma ótima voz.
A tradição que o FCLG retoma é das mais importantes. Essa formação existe na música negra norte-americana e na cubana. Aqui no Brasil, tivemos ótimos exemplos, como a banda Black Rio, concebida em 1976 por Oberdan Magalhães e Barrosinho (e retomada em 1999 por William, filho de Oberdan), a Metalurgia, criada em 1982 por Bocato, e a Banda Mantiqueira, fundada por Naylor Proveta no final dos anos 1990. Em todas, a principal característica é a junção criativa e suingada de elementos do funk, da soul music, da salsa e do samba, verdadeiro louvor ao que há de melhor da cultura musical afro-americana, de norte a sul.
Como toda banda, a sessão rítmica do FCLG é sua alma. Tem força, suingue e dinâmica. O baixista Sérgio Bártolo não é do tipo virtuose, mas, ao contrário, sabe dosar a sustentação dos graves, o uso das síncopes e as sutilezas do acompanhamento. Com a bateria de Kuki Stolarski e a percussão de James Müller, formam uma estrutura coesa.
No disco, o conjunto é que se sobressai. O entrosamento, fruto de bom tempo tocando junto em casas noturnas de São Paulo e outras cidades, demonstra a importância do coletivo. Nesse CD, há convidados mais que importantes. Nos vocais, Sandra de Sá (na música Olhos Coloridos) e a rapper chilena Anita Makiza (em Funk Hum) dão toques especiais ao lado da cantora do grupo Paula Lima, hoje em carreira solo. Napoli, Speed, Black Alien e Max trabalham a dicção ritmada do rap sobre a base funk do grupo na canção Fourty Days. Os scratches ficam por conta dos DJs Raff (chileno) e do nosso Nutz. Em Meu Guarda-chuva, clássico de Ben Jor, a presença da Banda Mantiqueira intensifica a sonoridade dos metais.
Vale destacar o resgate do belíssimo tema instrumental Whistle Stop, dos mestres Eumir Deodato e João Donato, do disco Donato Deodato, de 1969, e da bem-humorada 16 Toneladas, sucesso de Travis Merle, cantor country dos anos 1940 e 1950, aqui adaptado para um samba cadenciado na voz gravíssima do trompetista Reginaldo Gomes.

domingo, 16 de maio de 2010

No botequim de Noel

Parece não ser novidade dizer que Noel Rosa era um gênio.
No entanto, pode soar estranho tratá-lo assim tamanha a simplicidade que ele possuía ao construir suas letras e melodias. Se gênio é aquele que cria algo rebuscado, hermético, que necessita de vários conceitos para ser entendido, Noel definitivamente não era isso. Porém, se pensarmos que gênio pode ser aquele que observa e capta o detalhe dentro do turbilhão da vida que se abre na nossa frente, então ele pode ser equiparado aos maiores artistas do mundo.
Isso fica nítido num clássico de nossa música popular. Imaginem alguém que entra num bar, pede um monte de coisas sem perder a pompa e sai com a conta pendurada? Pois é esse personagem que Noel retrata na letra de Conversa de botequim, famosa parceria dele com o músico paulista Vadico (pseudônimo de Oswaldo Gogliano), de 1935.
As frases na letra são absurdamente simples por reproduzirem a performance cotidiana da fala. Cantada numa melodia sem exageros e na cadência brejeira do samba, essa fala revela, em tom coloquial, o personagem que conversa com o garçom que o serve. Os acentos tônicos das palavras estão claramente sincronizados com a distribuição dos tempos fortes e fracos da melodia, o que dá uma excepcional naturalidade ao canto.
A cena descrita é digna dos melhores cronistas da nossa literatura. Revela um personagem malandro e folgado, descreve a cenografia do botequim carioca – o “nosso escritório” – como lugar de encontros e sociabilidades, mostra a presença do futebol e dos mosquitos e, por fim, cita outros personagens, entre a contravenção e a legalidade, comuns ao dia-a-dia da cidade: o garçom que limpa a mesa para que o cliente pague logo a conta, o charuteiro, o bicheiro, o patrão e, inclusive, um inesperado Seu Osório dono do guarda-chuva.
A descrição não deixa de lado certos objetos do ritual simbólico do botequim: cinzeiro, caneta tinteiro, revista, um telefone com um cadenciado número – 34-4333 – para ser discado e a despesa do que foi consumido. Há ainda o típico hábito alimentar matinal do brasileiro urbano indicado pela “boa média que não seja requentada/ Um pão bem quente com manteiga à beça/ Um guardanapo e um copo d’água bem gelado”.
A crônica de um botequim num dia ensolarado do Rio de Janeiro revela a fala e o caminhar do povo por meio do personagem que é símbolo da cultura carioca e que só poderia ser assim representado pelo gênio da canção popular brasileira.
E quem não conhece, “Que pendure essa despesa/ No cabide ali em frente”.