segunda-feira, 15 de novembro de 2010

O humor musical do Premê

Na década de 1980, o grupo paulistano Premeditando o Breque usou e abusou do humor em seus trabalhos. Composto por amigos da faculdade de música, o Premê (como ficou conhecido) esteve em festivais universitários no final dos anos 1970 e chegou, em 1981, ao primeiro disco homônimo produzido por conta própria. Participou com Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção e o grupo Rumo da vanguarda paulista, baseada no teatro/selo Lira Paulistana. Entre suas canções mais conhecidas está São Paulo, São Paulo, uma espécie de anti-hino à cidade.
O humor, sua principal característica, não aparecia apenas nas letras, como é mais comum quando pensamos no lado cômico da canção popular. Ao contrário de muitos compositores que trabalham o riso somente por meio da palavra, boa parte da veia cômica do grupo estava nas formas de arranjar suas composições e as versões que faziam de músicas conhecidas. Além da letra, o texto musical também carregava os sentidos do humor.
Algumas canções exemplificam esse tipo de inteligência musical. No disco Quase lindo, de 1983, na faixa Mascando clichê, os músicos utilizam os elementos musicais característicos da disco music (estilo dançante de sucesso comercial desenvolvido nos anos 1970 a partir da funky music) e os transformam em clichês. Como a peça é instrumental, inevitavelmente a indicação de humor se dá pelo uso exagerado das características musicais reconhecidas pelos ouvintes: o ritmo, as frases dos metais, os riffs rítmicos da guitarra, as vozes femininas em coro, o tipo peculiar do canto masculino, entre outras. Essa voz principal não canta letra alguma. Apenas reproduz a entonação da língua inglesa sem ser inteligível. Não dá para entender o idioma, as frases são pronunciadas erroneamente, ou são proferidas em trechos soltos, destacando apenas as nuances rítmicas típicas do canto no funk. Transformados em clichês, esses elementos são apresentados de forma escancarada para mostrarem com humor esses estereótipos.
Outras peças do Premê brincam com os gêneros musicais invertendo seus sentidos. Na também instrumental Samba absurdo (ver o vídeo abaixo), de Mario Manga, gravada no primeiro disco, o samba é reconhecido pelos instrumentos, pelo ritmo e pelos breques, mas é desestruturado quando rompe com a harmonia tradicional e insere trechos atonais. Por causa do estranhamento, essa inversão pode ser pensada como “piada musical”.

No disco Premê vivo, lançado em 1996, os músicos tocam com cinco cavaquinhos uma versão instrumental do sucesso pop de Roberta Flack de 1973 Killing me softly with his song. Nesse mesmo disco, ainda transformam a inconfundível marcha carnavalesca Coração de jacaré em um reggae perfeitamente reconhecido em sua estrutura rítmica, instrumental e vocal. Nesses casos, o dado cômico se encontra nos choques, aparentemente absurdos, entre as tradições que as músicas e seus inusitados arranjos provocam.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Tradição e modernidade com Gil

Se ele já foi ministro, bom ou mau, pouco importa. Mas, que o cara é bom mesmo como compositor, isso é verdade! Muitas das canções de Gilberto Gil são exemplos de construção criativa e informação cultural, sem deixar de tocar em rádios, fazer sucesso na boca do povo, participar de trilhas de novelas e se tornar jingle de comerciais de TV.
Um caso rico nesses quesitos todos é Pela Internet, gravada nos discos Quanta (1997) e Quanta gente veio ver (1998 – ao vivo e ganhador do Grammy de melhor disco de World Music). A letra descreve o desejo de entrar na Internet e se relacionar com o mundo pela rede mundial de informações digitais. Mas a aproximação com a web acontece sem deixar de lado os elementos de sua tradição. Gil retoma uma característica forte em seus trabalhos desde o tropicalismo que é a relação entre tradição e modernidade. Ele não quer simplesmente entrar na rede, mas pensa sua dinâmica a partir da vazante da maré, da jangada que veleja, da vontade de mandar um oriki (poema ou verso de saudação ou homenagem) de seu orixá. Ao mesmo tempo, globaliza a tradição ao propor juntar, pelo “infomar”, Taipé, Calcutá, Helsinque, Connecticut, Milão, Japão e Nepal.

O final da canção é a chave da teia de influências construída por Gil. Nas duas últimas linhas da letra, ele canta: “O chefe da polícia carioca avisa pelo celular / Que lá na praça Onze tem um videopôquer para se jogar”. Os que têm ouvidos mais apurados percebem que, neste trecho, ocorre uma mudança na harmonia e na melodia, como se fosse uma parte diferente do restante. Isso ocorre porque a letra faz uma paráfrase moderna do mítico samba Pelo telefone, de Donga e Mauro de Almeida, gravado por Baiano na Casa Edison, Rio de Janeiro, em 1917.
Em Pelo telefone, a frase é “O chefe da folia, pelo telefone, manda avisar / Que com alegria não se questione pra se brincar”. Porém, sabe-se que a versão gravada foi alterada e que a letra original, composta nas rodas de samba na casa da Tia Ciata, próxima da praça Onze, era “O chefe da polícia, pelo telefone, manda avisar / Que na Carioca tem uma roleta pra se jogar”. Com humor, essa versão criticava o delegado do Rio que fazia vista grossa com o jogo de azar na cidade.
O samba Pelo telefone é, na verdade, um maxixe. Porém, fez grande sucesso na época e transitou como poucos pelos níveis culturais popular (sua origem), erudito-letrado (foi registrado em partitura na Biblioteca Nacional, no Rio) e comercial-massivo (gravado em disco). Até hoje, os “bambas” estudiosos do samba o definem como um dos primeiros a marcar a história do gênero. Daí ter sido homenageado por cantores como Almirante, Martinho da Vila, Joyce, entre outros.
O que Gilberto Gil fez foi aumentar a lista de homenagens com a inteligente paráfrase que vincula a modernidade do mundo digital ao dado mítico de fundação do samba carioca concretizado no maxixe de Donga.