quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Tão compositora, quanto cantora e baixista

Instrumentos musicais não têm sexo. São as culturas e as sociedades que dão determinados sentidos de gênero a eles. O baixo, por exemplo, seja acústico ou elétrico, tem sido visto como instrumento masculino não só pelo tamanho ou pela forte tensão das cordas, mas principalmente pelo seu timbre grave como a voz do homem.
Porém, como cultura não é ditadura, isso não quer dizer que não existam mulheres baixistas. No Brasil, temos Lelena Anhaia, que tocou no grupo Luni e nas Orquídeas do Brasil, e Gê Côrtes, que atua na banda do programa Altas Horas, da TV Globo, e que participou do lendário Kali, grupo de música instrumental só de mulheres. Há uns anos, Lenine convidou para alguns shows a baixista cubana Yusa. Fora do país, destaco Meshell Ndegeocello, uma alemã cheia de groove que canta e toca muito bem.
Na seara do jazz, a boa surpresa é uma menina de 24 ou 25 anos chamada Esperanza Spalding, cantora, compositora e baixista de extrema qualidade. Nascida em Portland, no estado americano de Oregon, de origem simples, destacou-se muito cedo pela sensibilidade musical e pelo interesse em música erudita e em blues, funk e rap. Estudou na Berklee College, famosa escola de música nos EUA, até se tornar sua mais jovem professora aos 20 anos. Para os que prezam a experiência, a cantora já tocou com Stanley Clarke, Pat Metheny, o vibrafonista Dave Samuels e Patti Austin.
Esperanza tem dois CDs e o segundo – "Esperanza" – é um excelente trabalho. A faixa de abertura é "Ponta de Areia", de Milton Nascimento e Fernando Brandt, cantada docemente num impecável português. Além da voz, o arranjo da canção se destaca pelo trabalho de percussão de Jamey Haddad, seu colega de trabalho na Berklee, ao usar o hadgini, um tipo de percussão oca em forma de V com um buraco em cima, no qual se bate com a palma da mão.
Nas faixas jazzísticas, sua qualidade como instrumentista é patente. Além dela, o pianista Leo Genovese e o baterista Otis Brown demonstram suingue e destreza nos improvisos. Esperanza canta em espanhol em "Cuerpo y Alma", também com ótima pronúncia. Em "I Adore You", um delicioso samba-funk, revela novamente a ligação com a música brasileira, já indicada no primeiro disco – "Junjo" – em que toca "Loro", de Egberto Gismonti.
Para fechar o CD "Esperanza", ela canta "Samba em Prelúdio", clássico samba-canção de Baden Powell e Vinícius de Moraes, com os típicos ingredientes temáticos de canto de dor-de-cotovelo. De forma inusitada, sua interpretação retoma aquele canto melancólico de vogais alongadas, pré-bossa nova e cheio de sentimentalismo.
Para os que creem numa possível masculinidade do baixo, este é um exemplo de “masculinidade” doce e sensível!

(Publicado em dez/2009 no site www.entermagazine.com.br)