sábado, 26 de novembro de 2011

Um amor maluco de Chico Buarque

Corria o ano de 1984. Nas praças das grandes capitais, pessoas se manifestavam em favor de eleições diretas para presidente da República em apoio à emenda constitucional feita pelo então deputado Dante de Oliveira. O movimento das Diretas Já mobilizava a sociedade civil, mas instituições duras, como governo militar e a TV Globo, por exemplo, negligenciavam o que já era visível.
Em meio ao fuzuê das ruas, um homem maluco de paixão vê “todo mundo na rua de blusa amarela” e acha “que era ela puxando um cordão”. E o fulano parece não ter a exata noção do que ocorria. Tanto que sente aflição e percebe sua “cabeça já pelas tabelas”. É assim que Chico Buarque descreve as sensações absurdas de um apaixonado em meio aos comícios das Diretas Já no samba Pelas tabelas, lançado em disco naquele ano.

Mesmo sabendo que seu desconforto não abala ninguém, as maluquices do personagem aparecem em situações estranhas: ao ver “um bocado de gente descendo as favelas” e achando que eles iam “pedir a cabeça de um homem que olhava as favelas”; no medo de ter sua “cabeça rolando no Maracanã”; ou quando vê “a galera aplaudindo de pé as tabelas” jurando “que era ela que vinha chegando com minha cabeça já pelas tabelas”.
A confusão do apaixonado está incorporada à canção. O trecho da letra citado no final do parágrafo anterior demonstra a intenção do compositor em traduzir a paranoia numa ambiguidade. Há aqui dois versos: “Eu jurei que era ela que vinha chegando/ Com minha cabeça já pelas tabelas”. Pelas estruturas repetitivas da letra (sem refrão) e da melodia e pelo canto acelerado de Chico, que junta ambas as frases, entende-se duas coisas: que ela chegava com a cabeça do cara nas mãos, ou, como aparece em outros trechos, que ele estava “já pelas tabelas”, ou seja, confuso.
Além desses estranhamentos, o desconforto ocorre ainda dentro da música. Como sua estrutura (harmonia e melodia) é cíclica, tal repetição gera situações incômodas ao ouvinte, apenas quebradas pelo acompanhamento rítmico de um gostoso samba rasgado.
Se as citações às Diretas Já estão nas pessoas com blusa amarela, na turma descendo as favelas, na “cidade de noite batendo as panelas”, o que se destaca na letra não é exatamente a postura política, e sim a perturbação de alguém que procura a amada desesperadamente em pleno caos. Aqui, Chico não é político, como muitas vezes teimam em reduzi-lo. Ele trata criativamente de um amor individual num aflitivo momento histórico. Como ele mesmo comentou: “É essa confusão do individual com o coletivo, e aponta muito para o individual naquele momento coletivo. Mas a leitura predominante é a política, que é uma leitura viciada” (citado por Wagner Homem em seu livro Histórias de canções: Chico Buarque, p. 228).

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

O DJ e as novas colagens musicais

Nas últimas décadas, uma forma curiosa de colagem sonora tem sido utilizada, não sem muitas polêmicas. Me refiro ao trabalho dos DJs na música eletrônica e no hip-hop. Como já indiquei (post de 22/jun/2010), o DJ surgiu no contexto do rádio. Era o disc jóquei, um profissional que organizava a programação da emissora, definia o que era tocado e, principalmente, se responsabilizava pelos lançamentos.
Atualmente, esse personagem desapareceu do contexto radiofônico e migrou para as festas rave e para o hip hop, com outras funções. Agora, esse artista manipula discos, aparelhos toca-discos, mesa de mixagens e samplers, anima festas com misturas de gêneros e múltiplas citações musicais.
Alguns o qualificam como tratante. Numa coluna na revista Rolling Stone, li uma vez o que Miguel Sokol comentava sobre o DJ: “Desde quando DJ toca alguma coisa? Por mais feeling que tenham, por mais mortal que seja a acrobacia deles, o que toca é o disco. O DJ, sejamos sinceros, não faz mais do que gozar com o pau dos outros”.
De imediato, é difícil não concordar com Sokol. Ainda mais pensando nos tristes exemplos que ele cita: Boy George (que já foi de tudo na vida), Glen Matlock (baixista dos Sex Pistols que nem terminou de gravar o único disco do grupo, Never Mind the Bollocks, e foi mandado embora da banda) e Andy Rourke (um dos Smiths à sombra de Morrisey).
No entanto, a análise não pode parar por aí. Há trabalhos bem bacanas e criativos na cena eletrônica que vão num sentido contrário a esses indicados pelo autor. Um deles é o do DJ Dolores. Seu conhecimento dos ritmos tradicionais do nordeste e sua capacidade de juntar sonoridades específicas o fazem um mestre nessa área.

O mesmo é possível dizer do DJ Patife, bastante eficiente e inovador nos trabalhos com Fernanda Porto, musicista e compositora que explora com critérios os recursos da eletrônica.
DJ sério é aquele que pesquisa músicas e timbres, que grava discos de vinil com prensagem única (dubplates) identificadores de sua originalidade, que tem sensibilidade para novas misturas, que tem senso rítmico para os scratchs (ruídos rítmicos criados pelo vai-e-vem da agulha nos sulcos do vinil) e usa com destreza os infinitos recursos eletrônicos do sampler.
Este equipamento (verdadeiro totem da eletrônica) permite séries de efeitos de colagem e, por isso, a música assim produzida acaba por se fundamentar numa lógica de “pilhagem”. Ora identificando os trechos gravados de canções, ora brincando com misturas de timbres e sonoridades, o DJ é um artista eminentemente experimental que descobre soluções a partir de muitas tentativas. Sim, podemos dizer intuitivas. Da mesma forma que fazem os tais “músicos de ouvido”, de cuja intuição musical brotam ótimas composições e execuções.
A verdade é que os DJs se fundamentam na nova estética musical baseada na cada vez mais intensa mediação tecnológica digital.