quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Olho de Peixe

A abordagem de temas conceituais na música popular brasileira tem razoável tradição. Obviamente, está longe de aparecer na maioria das letras, mas é possível encontrá-la na obra de alguns compositores atentos a esse diferencial. Um exemplo disso está em "Olho de Peixe", composta por Lenine e gravada no disco homônimo dele e do percussionista Marcos Suzano, de 1992.
A letra trata de dois pólos opostos da razão humana: suas capacidades de encobrimento e de descoberta, ou seja, momentos de fechamento e aqueles em que há uma abertura ao desconhecido. A primeira situação – em que a mente se limita no sentido de repressão – está em dois trechos: “Permanentemente, preso ao presente / O homem na redoma de vidro / São raros instantes de alívio e deleite” e “É como se passasse a vida inteira / Eternizando a miragem / É como o capuz negro / Que cega o falcão selvagem”. A outra situação – quando o instinto da razão caminha para o descobrimento – aparece em: “Ele descobre o véu que esconde o desconhecido / E é como uma tomada à distância / Uma grande angular / É como se nunca tivesse existido dúvida”.
As atitudes de fechamento e descoberta são definidas pela ação da mente humana que, como num baú, decide o que deve ou não ser guardado. É o mesmo mecanismo da memória, em que fatos e ideias são arquivados ou descartados conforme passam pelo filtro da razão. Daí a sentença: “Mas a razão prevalece / Impõe seus limites / E ele se permite esquecer de lembrar”.
Finalmente, para evitar a definição fácil e fechada, Lenine termina a letra com uma pergunta metafórica para levar o ouvinte à reflexão: “Se na cabeça do homem tem um porão / Onde moram o instinto e a repressão / (diz aí) / O que tem no sótão?”. Ou seja, se no porão preso ao subsolo existem esses instrumentos todos de repressão e libertação, o que será que há no sótão, local alto que se abre ao ar? O trecho lança mão ainda de um recurso linguístico típico da conversa informal entre pessoas (“diz aí”) para instigar o ouvinte à solução.
Sendo canção, a letra ganha outros sabores a partir da música. No arranjo, além da voz e do violão de Lenine, há uma curta melodia do sax soprano de Carlos Malta que aparece em vários trechos e funciona como refrão ou, seguindo a dualidade da letra, como condicionamento que nos faz lembrar do presente e do já conhecido. Ao mesmo tempo, o pandeiro de Marcos Suzano sustenta o ritmo da música num compasso de cinco tempos, formato muito estranho aos ouvidos acostumados ao repetitivo padrão de quatro tempos. Esse elemento rítmico inovador equivale, conforme a letra, ao desvelamento do desconhecido, a tomada de uma grande angular que clareia o que antes era dúvida.
Para perceber sutis diferenças, vale a pena ouvir o arranjo dessa pequena-grande canção na gravação feita por Zizi Possi em seu disco "Mais Simples", de 1996.

(Publicado em jan/2010 no site www.entermagazine.com.br)

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

O samba e o Tio Sam

De meados dos anos 1930 até 1945, o governo de Getúlio Vargas incentivou compositores a criarem músicas que falassem bem do país, prática propagandística corriqueira em muitas ditaduras, como aquela do Estado Novo getulista. Alguns aproveitaram e produziram verdadeiras peças ufanistas a saudar a terra ou o próprio governo. Majoritariamente sambas, tais canções foram chamadas de sambas-exaltação e um dos exemplos mais famosos é "Aquarela do Brasil", de Ary Barroso, gravada por muitos desde sua aparição há exatos 70 anos.
Porém, houve compositores que souberam trabalhar algumas nuances interessantes. Refiro-me a músicas cujas letras não se fecham na pura divulgação positiva, mas trabalham alguma informação não tão óbvia. É o caso de "Brasil Pandeiro", de Assis Valente. A letra desse samba trata muito bem o Brasil, sua música (“expressões que não têm par”), o valor do povo mestiço (“essa gente bronzeada”), a comida típica (“cuscuz, acarajé e abará”), entre outras pérolas.
Porém, curiosamente, parece zombar dos norte-americanos ao citar a superioridade brasileira no gingado e no paladar: “Eu quero ver o Tio Sam tocar pandeiro para o mundo sambar / O Tio Sam está querendo conhecer a nossa batucada / Anda dizendo que o molho da baiana melhorou seu prato (...) Na Casa Branca já dançou a batucada de Ioiô e Iaiá”. Vale lembrar que, na época, os EUA participavam da segunda grande guerra na Europa.
Ironicamente, a reconhecida falta de bossa dos gringos estaria em oposição à grandeza da potência militar e, nos quesitos suingue e paladar, ambos ligados ao prazer, seria inquestionável a dominância brasileira. Ao final, numa verdadeira apoteose, Assis conclama pandeiros esquentados, terreiros iluminados, pastorinhas e cantores, a elevarem a expressão do Brasil porque “nós queremos sambar”.
Outra relação curiosa é que, no período, Carmen Miranda fazia sucesso nos EUA e, junto de Zé Carioca, personagem da Disney, aproximava os dois países – para o bem ou para o mal. Podemos pensar que o deboche do compositor fora tamanho que corria-se o risco da música não ser bem aceita ou entendida. Talvez tenha sido esse o motivo de Carmen ter-se recusado a cantar o samba, gravado em 1940 pelo grupo vocal Anjos do Inferno.
Rusgas à parte, Assis morreu de desgosto em 1958, três anos depois da Pequena Notável, e a composição foi regravada com grande sucesso em 1972 pelos Novos Baianos, grupo pós-tropicalista que redesenhou a mistura samba-rock. No arranjo para "Brasil Pandeiro", a brejeirice típica do violão de Moraes Moreira, o canto de Baby, Moraes e Paulinho Boca de Cantor e as guitarras em contraponto de Pepeu Gomes demonstram a verdadeira bossa nacional.
Última ironia: esse samba tornou-se jingle de uma campanha publicitária na Copa do Mundo de Futebol de 1994, nos EUA.

(Publicado em nov/2009 em www.entermagazine.com.br)