A abordagem de temas conceituais na música popular brasileira tem razoável tradição. Obviamente, está longe de aparecer na maioria das letras, mas é possível encontrá-la na obra de alguns compositores atentos a esse diferencial. Um exemplo disso está em "Olho de Peixe", composta por Lenine e gravada no disco homônimo dele e do percussionista Marcos Suzano, de 1992.
A letra trata de dois pólos opostos da razão humana: suas capacidades de encobrimento e de descoberta, ou seja, momentos de fechamento e aqueles em que há uma abertura ao desconhecido. A primeira situação – em que a mente se limita no sentido de repressão – está em dois trechos: “Permanentemente, preso ao presente / O homem na redoma de vidro / São raros instantes de alívio e deleite” e “É como se passasse a vida inteira / Eternizando a miragem / É como o capuz negro / Que cega o falcão selvagem”. A outra situação – quando o instinto da razão caminha para o descobrimento – aparece em: “Ele descobre o véu que esconde o desconhecido / E é como uma tomada à distância / Uma grande angular / É como se nunca tivesse existido dúvida”.
As atitudes de fechamento e descoberta são definidas pela ação da mente humana que, como num baú, decide o que deve ou não ser guardado. É o mesmo mecanismo da memória, em que fatos e ideias são arquivados ou descartados conforme passam pelo filtro da razão. Daí a sentença: “Mas a razão prevalece / Impõe seus limites / E ele se permite esquecer de lembrar”.
Finalmente, para evitar a definição fácil e fechada, Lenine termina a letra com uma pergunta metafórica para levar o ouvinte à reflexão: “Se na cabeça do homem tem um porão / Onde moram o instinto e a repressão / (diz aí) / O que tem no sótão?”. Ou seja, se no porão preso ao subsolo existem esses instrumentos todos de repressão e libertação, o que será que há no sótão, local alto que se abre ao ar? O trecho lança mão ainda de um recurso linguístico típico da conversa informal entre pessoas (“diz aí”) para instigar o ouvinte à solução.
Sendo canção, a letra ganha outros sabores a partir da música. No arranjo, além da voz e do violão de Lenine, há uma curta melodia do sax soprano de Carlos Malta que aparece em vários trechos e funciona como refrão ou, seguindo a dualidade da letra, como condicionamento que nos faz lembrar do presente e do já conhecido. Ao mesmo tempo, o pandeiro de Marcos Suzano sustenta o ritmo da música num compasso de cinco tempos, formato muito estranho aos ouvidos acostumados ao repetitivo padrão de quatro tempos. Esse elemento rítmico inovador equivale, conforme a letra, ao desvelamento do desconhecido, a tomada de uma grande angular que clareia o que antes era dúvida.
Para perceber sutis diferenças, vale a pena ouvir o arranjo dessa pequena-grande canção na gravação feita por Zizi Possi em seu disco "Mais Simples", de 1996.
(Publicado em jan/2010 no site www.entermagazine.com.br)
Já que música e canção são assuntos sérios, este é um espaço para discutir os sons das coisas musicais. Podem ser cantados, tocados, dançados ou ouvidos. Podem também ser altos ou baixos, daqui ou de longe. Não há problema se forem amargos, doces demais ou organizados sob outra lógica. Precisam apenas ser apreciáveis de determinado jeito, entendidos e explicados para que tenham sua beleza revelada. Em suma, é "o som da coisa"!
quinta-feira, 14 de janeiro de 2010
quarta-feira, 6 de janeiro de 2010
O samba e o Tio Sam
De meados dos anos 1930 até 1945, o governo de Getúlio Vargas incentivou compositores a criarem músicas que falassem bem do país, prática propagandística corriqueira em muitas ditaduras, como aquela do Estado Novo getulista. Alguns aproveitaram e produziram verdadeiras peças ufanistas a saudar a terra ou o próprio governo. Majoritariamente sambas, tais canções foram chamadas de sambas-exaltação e um dos exemplos mais famosos é "Aquarela do Brasil", de Ary Barroso, gravada por muitos desde sua aparição há exatos 70 anos.
Porém, houve compositores que souberam trabalhar algumas nuances interessantes. Refiro-me a músicas cujas letras não se fecham na pura divulgação positiva, mas trabalham alguma informação não tão óbvia. É o caso de "Brasil Pandeiro", de Assis Valente. A letra desse samba trata muito bem o Brasil, sua música (“expressões que não têm par”), o valor do povo mestiço (“essa gente bronzeada”), a comida típica (“cuscuz, acarajé e abará”), entre outras pérolas.
Porém, curiosamente, parece zombar dos norte-americanos ao citar a superioridade brasileira no gingado e no paladar: “Eu quero ver o Tio Sam tocar pandeiro para o mundo sambar / O Tio Sam está querendo conhecer a nossa batucada / Anda dizendo que o molho da baiana melhorou seu prato (...) Na Casa Branca já dançou a batucada de Ioiô e Iaiá”. Vale lembrar que, na época, os EUA participavam da segunda grande guerra na Europa.
Ironicamente, a reconhecida falta de bossa dos gringos estaria em oposição à grandeza da potência militar e, nos quesitos suingue e paladar, ambos ligados ao prazer, seria inquestionável a dominância brasileira. Ao final, numa verdadeira apoteose, Assis conclama pandeiros esquentados, terreiros iluminados, pastorinhas e cantores, a elevarem a expressão do Brasil porque “nós queremos sambar”.
Outra relação curiosa é que, no período, Carmen Miranda fazia sucesso nos EUA e, junto de Zé Carioca, personagem da Disney, aproximava os dois países – para o bem ou para o mal. Podemos pensar que o deboche do compositor fora tamanho que corria-se o risco da música não ser bem aceita ou entendida. Talvez tenha sido esse o motivo de Carmen ter-se recusado a cantar o samba, gravado em 1940 pelo grupo vocal Anjos do Inferno.
Rusgas à parte, Assis morreu de desgosto em 1958, três anos depois da Pequena Notável, e a composição foi regravada com grande sucesso em 1972 pelos Novos Baianos, grupo pós-tropicalista que redesenhou a mistura samba-rock. No arranjo para "Brasil Pandeiro", a brejeirice típica do violão de Moraes Moreira, o canto de Baby, Moraes e Paulinho Boca de Cantor e as guitarras em contraponto de Pepeu Gomes demonstram a verdadeira bossa nacional.
Última ironia: esse samba tornou-se jingle de uma campanha publicitária na Copa do Mundo de Futebol de 1994, nos EUA.
(Publicado em nov/2009 em www.entermagazine.com.br)
Porém, houve compositores que souberam trabalhar algumas nuances interessantes. Refiro-me a músicas cujas letras não se fecham na pura divulgação positiva, mas trabalham alguma informação não tão óbvia. É o caso de "Brasil Pandeiro", de Assis Valente. A letra desse samba trata muito bem o Brasil, sua música (“expressões que não têm par”), o valor do povo mestiço (“essa gente bronzeada”), a comida típica (“cuscuz, acarajé e abará”), entre outras pérolas.
Porém, curiosamente, parece zombar dos norte-americanos ao citar a superioridade brasileira no gingado e no paladar: “Eu quero ver o Tio Sam tocar pandeiro para o mundo sambar / O Tio Sam está querendo conhecer a nossa batucada / Anda dizendo que o molho da baiana melhorou seu prato (...) Na Casa Branca já dançou a batucada de Ioiô e Iaiá”. Vale lembrar que, na época, os EUA participavam da segunda grande guerra na Europa.
Ironicamente, a reconhecida falta de bossa dos gringos estaria em oposição à grandeza da potência militar e, nos quesitos suingue e paladar, ambos ligados ao prazer, seria inquestionável a dominância brasileira. Ao final, numa verdadeira apoteose, Assis conclama pandeiros esquentados, terreiros iluminados, pastorinhas e cantores, a elevarem a expressão do Brasil porque “nós queremos sambar”.
Outra relação curiosa é que, no período, Carmen Miranda fazia sucesso nos EUA e, junto de Zé Carioca, personagem da Disney, aproximava os dois países – para o bem ou para o mal. Podemos pensar que o deboche do compositor fora tamanho que corria-se o risco da música não ser bem aceita ou entendida. Talvez tenha sido esse o motivo de Carmen ter-se recusado a cantar o samba, gravado em 1940 pelo grupo vocal Anjos do Inferno.
Rusgas à parte, Assis morreu de desgosto em 1958, três anos depois da Pequena Notável, e a composição foi regravada com grande sucesso em 1972 pelos Novos Baianos, grupo pós-tropicalista que redesenhou a mistura samba-rock. No arranjo para "Brasil Pandeiro", a brejeirice típica do violão de Moraes Moreira, o canto de Baby, Moraes e Paulinho Boca de Cantor e as guitarras em contraponto de Pepeu Gomes demonstram a verdadeira bossa nacional.
Última ironia: esse samba tornou-se jingle de uma campanha publicitária na Copa do Mundo de Futebol de 1994, nos EUA.
(Publicado em nov/2009 em www.entermagazine.com.br)
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