quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

O baixo de Arthur Maia

Um ótimo exemplo da qualidade e da versatilidade do músico brasileiro é o contrabaixista carioca Arthur Maia. Seu terceiro disco solo instrumental Planeta Música, produção independente lançada em 2002, é prova disso. Nele, Maia se mostra compositor delicado, exímio arranjador e caminha com destreza por vários gêneros (salsa, choro, jazz, samba-funk etc.). Traz também excelentes convidados, como os norte-americanos Dennis Chambers (bateria), Mike Stern e Hiram Bullock (guitarristas, tendo o segundo falecido em 2005) e o saxofonista cubano Paquito D´Rivera. Entre a nata de instrumentistas brasileiros, destacam-se William Magalhães (Banda BlackRio), os bateristas Carlos Bala e Nenem, o pianista Gilson Peranzzetta, o percussionista Marcos Suzano, entre outros.
Arthur nasceu em família de músicos e teve como grande incentivador o tio Luizão Maia, famoso contrabaixista que acompanhou feras como Elis Regina, Tom Jobim, George Benson e Toots Thielemans. Prodígio, sua carreira começou na bateria ainda adolescente, tendo passado para o contrabaixo aos 16 anos. Antes dos 18, já acompanhava Ivan Lins e Luiz Melodia. Nos anos 1980, tocou no importante grupo Cama de Gato, de música instrumental, com o qual lançou um disco homônimo em 1986 (selo Som da Gente). Participou também, com Pedro Gil (baterista filho de Gilberto Gil morto num acidente de carro em 1990), da banda pop Egotrip.
Sua sensibilidade musical o levou a tocar com importantes cantores da MPB, como Lulu Santos, Djavan, Ney Matogrosso, Milton Nascimento e Gilberto Gil. Com este, realizou várias turnês internacionais. Da cena norte-americana, tocou com George Benson, Pat Metheny e Carlos Santana.

Se na música instrumental Maia mostra sua performance como instrumentista e arranjador, o fato de ter acompanhado artistas populares foi importante para que mostrasse suas qualidades também como cantor. Neste seu disco solo, sua voz aguda sempre acompanha os instrumentos, ora dobrando melodias ora como vocal de fundo. Um belíssimo arranjo para a canção A noite, de Victor Martins e Ivan Lins, demonstra a delicadeza de seu canto.
Além dessa faixa, vale destacar seu desempenho e dos músicos na suingada salsa Muchacha, na composição De ombro (do mestre baixista Jamil Joanes), em Planeta música, com participação na voz de Seu Jorge, e na regravação do choro Cama de gato, homenagem ao antigo grupo.

(De ombro, de Jamil Joanes)

É digno de nota o fato de este disco de Arthur Maia ter sido dedicado ao colega e excelente contrabaixista Nico Assumpção, morto precocemente em 2001. Para quem não sabe, Nico é quem faz o solo de baixo na música Jade, de João Bosco.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Chico Buarque, o construtor de letras-poemas

Letra de música não é, necessariamente, poema. E vice-versa. Em princípio, a letra se cria em rimas sobre uma estrutura melódica em determinado ritmo e arranjo musical. A poesia, mais autônoma, resolve-se no conjunto concreto das palavras.
Há letras que se aproximam de poemas por conta das peculiaridades e do rigor na combinação das palavras na poesia. Um caso desses é Construção, de Chico Buarque, gravada no LP homônimo de 1971. Suas frases refazem o percurso do dia de trabalho de um operário da construção civil. Todos os versos são alexandrinos (ou dodecassílabos, com 12 sílabas) e, em todo final de frase, Chico colocou uma palavra proparoxítona (com acento na antepenúltima sílaba). O objetivo era traduzir a vida arrastada do operário num ritmo poético também repetitivo: único, último, mágico, sólido etc.
Algumas metáforas são interessantes e revelam flashes dessa vida dura. Por exemplo, o peso e a dor do trabalho aparecem na frase “seus olhos embotados de cimento e lágrima”.
Até que, após erguer “quatro paredes sólidas”, comer “feijão com arroz como se fosse um príncipe” e dançar e gargalhar “como se ouvisse música”, o personagem tropeça e cai do alto do edifício em construção onde trabalha. A cena da queda é descrita como o vôo de um pássaro, até chegar ao “chão feito um pacote flácido”. A agonia de sua morte, em plena contramão, acaba por atrapalhar o tráfego na movimentada rua da cidade.
Porém, esse rigor poético não basta para traduzir o tema em questão. A música nos ajuda ao oferecer outros sentidos. A melodia, em sequências de notas repetidas, revela também a mesmice da vida operária. O ritmo de samba meio lento, cadenciado, com o som triste de um agogô, ecoa a repetição da vida do trabalho braçal e tais escolhas musicais mostram a tristeza da vida.
O arranjo é progressivo. Os instrumentos aparecem pouco a pouco no acompanhamento e “constroem” a cena até culminarem na morte do trabalhador. A partir desse ponto, com o corpo atrapalhando o tráfego, entram metais, cordas e coro produzindo melodias em contrapontos que simulam o trânsito aparentemente caótico de carros, buzinas e barulhos.
A intensidade sonora aumenta e dá o fundo para Chico cantar novamente a letra com a inversão das palavras do final de cada verso. Tal alteração, em meio aos ruídos do arranjo, provoca efeitos estranhos, como se a morte do personagem fosse traduzida nos absurdos irracionais das frases: “Beijou sua mulher como se fosse lógico (…) Ergueu no patamar quatro paredes flácidas (…) Sentou pra descansar como se fosse um pássaro”.
Se letra e melodia são obra de Chico, vale lembrar que o arranjo inovador que emoldura a composição tem como criador o maestro tropicalista Rogério Duprat, infelizmente falecido dia 26 de outubro de 2006.