sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Exercícios titânicos

Pelo menos em sua primeira fase, o grupo Titãs intrigava o ouvinte com a criatividade de algumas músicas, mesmo aquelas mais próximas do padrão de sucesso imediato que tocavam constantemente nas emissoras de rádios. Um caso bem curioso é a canção O Que, de Arnaldo Antunes, última faixa do célebre disco Cabeça Dinossauro (1986). Por causa de seu ritmo – um funk dançante (não é o carioca!) – esta música tocou muito em rádios e nas baladas de final de semana durante boa parte dos anos 80.
Pensando nisso, seria fácil dizer que ela é mais uma daquelas a fazer sucesso e, por isso, pouca coisa teria de interessante.
Ledo engano.
Se ouvirmos com atenção, vamos perceber aspectos, no mínimo, inusitados. O primeiro deles tem a ver com a letra, limitada à frase “Que não é o que não pode ser”. Ela é cantada por Arnaldo repetidamente, em pequenos trechos tirados de dentro dela e mantendo a sequência de palavras: “não é o que não pode / ser que não é / o que não pode ser que não / é o que não / pode ser que não / é”.
A rigor, a frase inteira e seus pedaços não querem dizer absolutamente nada, pois negam-se constantemente. Porém, como as entonações usadas pelo cantor são típicas de frases com sentido, falas comuns de nosso cotidiano, esses trechos parecem significar alguma coisa. Ou seja, colocam o ouvinte numa situação estranha: quando cantada, a letra parece dizer algo por causa da entonação, mas isso não se concretiza tornando-se um completo non sense.
Sua origem é um poema publicado no livro Psia (1986), do próprio Arnaldo. A frase absurda aparece impressa na página escrita no formato de uma circunferência, sem começo, nem fim.
Para fazer o arranjo musical, o grupo construiu uma estrutura também circular e repetitiva: uma frase no baixo em quatro compassos que se repete em toda música, variando apenas os outros instrumentos: baterias acústica e eletrônica, guitarras, vozes, teclados etc. A canção é, assim, um exemplo de minimalismo sonoro e poético: uma célula mínima na música (a frase do baixo) e outra na letra (a sentença estranha) a se multiplicarem ao longo da canção.
Esse choque de estranhamentos é o que dá à canção seu interessante aspecto criativo. Em primeiro lugar, o ritmo é ótimo para a dança, ingrediente que, por si só, atrai facilmente o ouvinte. Em segundo, ninguém presta muita atenção na letra enquanto dança. Aliás, boa parte das músicas de dança não tem letras criativas. E isso destaca O Que das demais típicas canções de sucesso. Se o ritmo embala a dança, a letra joga o ouvinte numa situação de incerteza. Ela acaba por exercitar a atenção e testar os limites da percepção.

Um comentário:

  1. Dá uma olhada nas primeiras fotos: http://www.flickr.com/photos/dscandurra/page2/

    Não é dança nem música, mas é muito criativo também.

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