quinta-feira, 15 de julho de 2010

“Tu-tu tens um co-coração fi-fi fingido”, disse o gago apaixonado...

Os teatros de revista do Rio de Janeiro buscavam sempre os melhores compositores para suas montagens. Entre o final de 1930 e o início de 1931, Noel Rosa fora procurado por um desses “roteiristas” que queria montar a revista Café com música, cujos quadros tratariam, de forma crítica e bem humorada, do preço do cafezinho. Apesar de estar às voltas com o vestibular para medicina, no qual passou com a nota mínima, Noel acabou por aceitar a oportunidade de colocar suas canções nos palcos.
Entre as composições feitas para a peça, que seria lançada em abril de 1931 no Teatro Recreio, estava Gago apaixonado, um dos maiores exemplos da criatividade deste cronista da canção popular.
Diz a lenda (leia-se, segundo o próprio compositor) que ela foi feita numa noite para o amigo Manuel Barreiros, o Barreirinha, cuja gagueira se acentuou por causa de um amor não correspondido. O samba foi cantado pelo ator Mesquitinha no palco do teatro, mas a gravação que o imortalizou e se tornou um marco na história da música popular brasileira foi a do próprio menino de Vila Isabel, feita na então gravadora Columbia.
Um aspecto curioso desse samba é a relação entre letra e música. Em primeiro lugar, traz uma curiosa metalinguagem, ou seja, a gagueira está colocada na própria estrutura da canção: é o próprio gago que reclama da mulher cruel que fez estragos em seu coração. A interpretação de Noel coloca nas notas da melodia várias repetições de sílabas ou fonemas reproduzindo a tartamudez aflita do personagem. Não há como cantar a letra sem ser gago. As repetições da letra no canto, além de traduzirem a inusitada situação de Barreirinha, demonstram a graça da história: “Só só só só por ter so so fri frido”, “Tu tu tu tu tu tu tu tu tens um co coração fi fi fingido”.



O efeito cômico do gago sem amor é aumentado com o arranjo feito pelo compositor e pelos músicos que o acompanharam. Se som do pistão com surdina tocado por Napoleão Tavares já provocava ironia, Luis Barbosa exagerou ao batucar um lápis entre os dentes abrindo e fechando a boca para deixar o som mais agudo ou mais grave. A brincadeira com os timbres mostra uma das primeiras formas de comunicar humor pelo arranjo musical na música popular brasileira.
A engraçada dor do personagem e a forma como ele devolve à mulher seu sofrimento também são dignos de nota. Já que ela aparece sem nome, sem identidade, o gago a define como cruel, má, falsa e a acusa de ter um coração fingido, de torná-lo vagabundo, moribundo. Por fim, lança-lhe a praga: “Tu vais fi fi ficar corcunda!”
Como é possível tratamento tão inteligente, inusitado e bem humorado do amor? Obra de situações curiosas observadas com fina percepção e narradas de maneira criativa. Ou seja, é Noel Rosa!

Nenhum comentário:

Postar um comentário