quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

O samba e o Tio Sam

De meados dos anos 1930 até 1945, o governo de Getúlio Vargas incentivou compositores a criarem músicas que falassem bem do país, prática propagandística corriqueira em muitas ditaduras, como aquela do Estado Novo getulista. Alguns aproveitaram e produziram verdadeiras peças ufanistas a saudar a terra ou o próprio governo. Majoritariamente sambas, tais canções foram chamadas de sambas-exaltação e um dos exemplos mais famosos é "Aquarela do Brasil", de Ary Barroso, gravada por muitos desde sua aparição há exatos 70 anos.
Porém, houve compositores que souberam trabalhar algumas nuances interessantes. Refiro-me a músicas cujas letras não se fecham na pura divulgação positiva, mas trabalham alguma informação não tão óbvia. É o caso de "Brasil Pandeiro", de Assis Valente. A letra desse samba trata muito bem o Brasil, sua música (“expressões que não têm par”), o valor do povo mestiço (“essa gente bronzeada”), a comida típica (“cuscuz, acarajé e abará”), entre outras pérolas.
Porém, curiosamente, parece zombar dos norte-americanos ao citar a superioridade brasileira no gingado e no paladar: “Eu quero ver o Tio Sam tocar pandeiro para o mundo sambar / O Tio Sam está querendo conhecer a nossa batucada / Anda dizendo que o molho da baiana melhorou seu prato (...) Na Casa Branca já dançou a batucada de Ioiô e Iaiá”. Vale lembrar que, na época, os EUA participavam da segunda grande guerra na Europa.
Ironicamente, a reconhecida falta de bossa dos gringos estaria em oposição à grandeza da potência militar e, nos quesitos suingue e paladar, ambos ligados ao prazer, seria inquestionável a dominância brasileira. Ao final, numa verdadeira apoteose, Assis conclama pandeiros esquentados, terreiros iluminados, pastorinhas e cantores, a elevarem a expressão do Brasil porque “nós queremos sambar”.
Outra relação curiosa é que, no período, Carmen Miranda fazia sucesso nos EUA e, junto de Zé Carioca, personagem da Disney, aproximava os dois países – para o bem ou para o mal. Podemos pensar que o deboche do compositor fora tamanho que corria-se o risco da música não ser bem aceita ou entendida. Talvez tenha sido esse o motivo de Carmen ter-se recusado a cantar o samba, gravado em 1940 pelo grupo vocal Anjos do Inferno.
Rusgas à parte, Assis morreu de desgosto em 1958, três anos depois da Pequena Notável, e a composição foi regravada com grande sucesso em 1972 pelos Novos Baianos, grupo pós-tropicalista que redesenhou a mistura samba-rock. No arranjo para "Brasil Pandeiro", a brejeirice típica do violão de Moraes Moreira, o canto de Baby, Moraes e Paulinho Boca de Cantor e as guitarras em contraponto de Pepeu Gomes demonstram a verdadeira bossa nacional.
Última ironia: esse samba tornou-se jingle de uma campanha publicitária na Copa do Mundo de Futebol de 1994, nos EUA.

(Publicado em nov/2009 em www.entermagazine.com.br)

Um comentário:

  1. Tem a ver com o post do Leandro Narloch:
    http://guiapoliticamenteincorreto.wordpress.com/2010/02/12/carnaval-e-a-tomatina-nao-a-sapucai/

    e do jeito que eu comentei seus posts, acho que a gente deveria marcar um barzinho.
    abs

    ResponderExcluir